Num gesto
que alguns poderão considerar inspirado em Joaquim de Flora, prefigurou o
filósofo português José Marinho (1904-1975) o advento de uma “religião do
Espírito”, que caracteriza ora como uma ultrapassagem da “religião cristã”, ora
como a própria “religião cristã” na sua mais apurada expressão. Eis, decerto, a
consideração que António Quadros (1923-1993) subscreveria, não tivesse ele
defendido, na sua obra Portugal, Razão e
Mistério que a doutrina das três idades “em nenhum lugar deitou raízes tão
fundas como no nosso país e na nossa cultura”.
Não só, como
faz questão de frisar, no nosso país e na nossa cultura. Daí, desde logo, a sua
referência à Divina Comédia de Dante
que, como salienta, é mesmo “por alguns considerada como apocalipse joaquimita”. Daí ainda a sua referência a Lessing e a
Comte – cuja lei positivista dos três estados “dir-se-ia uma imitação a contrario sensu da teologia da história
do Abade de Flora” –, daí ainda a sua referência a Fichte e a Hegel – cuja
filosofia da história “pode ser considerada como uma tradução filosófica e
moderna da teoria de Joaquim de Flora” –, daí ainda, enfim, a sua referência a
Schelling e ao próprio Marx.
Apesar de
ter influenciado, de uma forma ou de outra, todos esses filósofos, entende
António Quadros que é “na obra dos filósofos que dominaram os dois últimos
séculos da nossa cultura” que a influência de Joaquim de Flora mais se faz
sentir, exemplificando essa sua tese com a referência que faz às obras de
Agostinho da Silva, Álvaro Ribeiro, Fernando Pessoa e Jaime Cortesão – o
primeiro “pela via de uma metanóia mítica e mística”, o segundo “pela via
filosófica e pedagógica”, o terceiro “pela via alquímico-poética”, o quarto
“pela via historiográfica” (a respeito de Jaime Cortesão, ver em particular:
António José da Silva, Naturalismo e
Religiosidade em Jaime Cortesão; nesta obra, defende-se que a grande
influência espiritual de Jaime Cortesão foi a de Francisco de Assis).
Não
contestando qualquer desses exemplos que nos dá António Quadros – ainda que não
na mesma medida, concordamos com todos eles (a acrescentar algum nome,
acrescentaríamos, de imediato, o de Raul Leal, não tivesse sido ele, nas
palavras de Pinharanda Gomes, “irmão espiritual de Joaquim de Flora” – para
além de “companheiro visionário de Bandarra, ouvinte exaltado de António Vieira
e confrade de Morus e Campanella” –, tendo chegado inclusivamente a imaginar-se
“a encarnação de Henoch, profeta do Espírito Santo”) –, não cairemos, contudo,
aqui na tentação – a nosso ver, demasiado fácil – de acrescentar a esta série o
nome de José Marinho.
Não porque
não existam algumas efectivas afinidades – a começar nessa prefigurada
“religião de Espírito”, enquanto religião sequente à “religião do Pai” e à
“religião do Filho”, enquanto “religião que nos chama para a verdade oculta”.
No entanto, José Marinho teve uma excessiva ambivalência de sentimentos
relativamente ao cristianismo para que, sem mais, o pudéssemos inscrever na
linhagem cristã – por mais que heterodoxa – de Joaquim de Flora.
[Se é que
foi mesmo “heterodoxa” – como escreveu Manuel J. Gandra a este respeito, na sua
obra Joaquim de Fiore, Joaquimismo e
Esperança Sebástica: “Joaquim de Fiore (c.1130-1202) não foi o criador de
um corpo doutrinário, traduzindo as reflexões sobre o sentido da história
universal e interpretando-a em função do Fim
dos Tempos, simplesmente porque essa é, sempre foi, uma preocupação
universal. O cristianismo assimilara-a do judaísmo por intermédio do Apocalipse de S. João, mesclando-a, em
casos específicos, com contributos pagãos que ora seria fastidioso discriminar.”]
Tal
ambivalência de sentimentos relativamente ao cristianismo não abalou, contudo,
o posicionamento religioso de José Marinho, posicionamento esse que em múltiplas
passagens da sua obra assumiu, designadamente em duas passagens particularmente
eloquentes: “Assim dizendo me exprimo como homem religioso. E isso me leva na
sequência a dizer que não nasci filósofo. Pois vim à filosofia por íntima
necessidade, e não sem alheia ajuda. Nasci homem religioso (...).”; “Se nós
definirmos religião como o viver ligado ao absoluto, seja efectivamente seja
intencionalmente, devo dizer que esta situação espiritual foi permanente em
mim. Abandonei a prática do cristianismo, nunca o sentido central dele. Comecei
a filosofar não porque me faltasse a fé, mas porque se me pôs a urgência de
esclarecê-la.”.
1 comentário:
Como se sabe, o cristianismo é derivado do judaísmo, surgiu como uma seita judaica, a dos nazarenos lá na cidade de Jerusalém.
A minha exegese dos quatro evangelhos bíblicos é a de que Jesus de Nazaré não tinha a intenção de fundar uma nova instituição religiosa, como é o formato do cristianismo hodierno. Me parece que o que Jesus queria é “tirar a religião institucional do meio” entre Deus e a humanidade. Comparando ao judaísmo e outras religiões existentes naquela época, tenho a impressão de que era para a igreja cristã ser algo mais informal, mais simples. Mas por interesses políticos, o cristianismo se institucionalizou com o tempo. Creio que a religião de Espírito foi a intenção do Pentecostes, quando os apóstolos receberam o Espírito Santo e começaram a espalhar as boas novas.
Mas eu tenho a opinião de que o cristianismo institucional atual (catolicismo romano, ortodoxia e protestantismo) não vai existir para sempre, vai acabar em alguns séculos futuramente, sendo substituída por uma versão mais espiritual e não-institucional de fé cristã.
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