No plano mais ideológico, há
decerto um racismo em Portugal, pouco expressivo mas existente, que mimetiza o
racismo da extrema-direita europeia (usemos a terminologia mais comum), o qual
se pode verbalizar da seguinte forma: “A Europa apenas para os europeus
(leia-se: para os europeus brancos)”. E que, por sua vez, é simétrico das
posições, não menos racistas, dos que defendem, por exemplo, que “África deve
ser apenas para os africanos (leia-se: para os africanos negros)”. Por mais que
isso choque a consciência politicamente correcta europeia, não há um racismo
mau (o branco) e um racismo bom (o negro).
Para além deste racismo mais
óbvio, há, porém, um outro, bem menos apreensível, mas bem mais influente.
Qualificá-lo-emos, à falta de melhor termo, como um racismo cultural ou
civilizacional. Neste, o acento tónico não se detém na questão do tom da pele,
mas nas questões culturais e civilizacionais. Formalmente “anti-racista”, este
outro racismo chega, porém, às mesmas conclusões: Portugal deve ter apenas
relações privilegiadas com os outros povos europeus porque é com esses que,
alegadamente, partilhamos a mesma cultura e a mesma civilização.
Subjectivamente, as pessoas que defendem este tipo de posições não se
consideram, de todo, racistas – o que não pomos em causa, até porque, nalguns
casos, este tipo de posições remete para um contexto epocal específico.
Um exemplo recente: no dia 12
de Julho, na sede da UCCLA: União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa, em
Lisboa, o Embaixador José Augusto Duarte, assessor do Presidente da República
Marcelo Rebelo de Sousa e que irá em breve representar o nosso país na China,
apresentou uma obra do Doutor Hélder Martins, sobre a “Casa dos Estudantes do
Império” (é esse mesmo o título da obra). Durante a sua apresentação, disse, a
certa altura, algo de muito sintomático, a propósito de, no início da sua
carreira, ter sido destacado para Moçambique – citamos de memória: “Naquela
altura [anos 80/90], estávamos todos [os portugueses, em particular, como
salientou, os mais jovens] voltados apenas para a Europa”.
Daí, como assumiu, a sua hesitação
inicial em aceitar o cargo de Embaixador em Moçambique – depois, como assumiu
igualmente, veio a apreciar muito a experiência. O que está aqui em causa não é,
decerto, a posição pessoal do Embaixador José Augusto Duarte (de quem, de
resto, ficámos com muito boa impressão), mas o que ela revela de uma
determinada época. De facto, durante algumas décadas, Portugal desprezou (quase)
por inteiro a relação com os restantes países lusófonos. O que, pelo menos em
parte, até se pode compreender – na ressaca da (traumática) guerra colonial e
da consequente (e não menos traumática) descolonização, a lusofonia parecia ser
ainda uma excrescência do nosso passado. Já no século XXI, ultrapassada essa
memória traumática, impõe-se uma outra atitude. Não anti-europeia, mas
assumidamente pró-lusófona, no regresso ao nosso futuro comum.
Habituados que estamos à
intervenção no espaço público, não nos surpreenderam, de todo, algumas reacções
ao nosso artigo “Portugal, um país racista?” (PÚBLICO, 18.07.2017). As mais
extremadas exploraram o mais do que estafado nexo “lusotropicalismo >
salazarismo > nazi-fascismo”.
Ainda que (cada vez mais)
cépticos quanto à possibilidade de desconstruir esses lugares-comuns, que em
particular pululam, sem qualquer espécie de sentido crítico, nas redes sociais,
não podemos deixar de os (tentar) contrariar.
Em benefício desse desiderato,
podemos até, à partida, aceitar a crítica de Fernando Henrique Cardoso,
reputado sociólogo e ex-Presidente do Brasil, a Gilberto Freyre, que sempre o
acusou de “adocicar as relações entre as etnias diferentes, considerando-o mais
poeta do que cientista” (cf. Adriano Moreira, “A Lusofonia como Utopia”, in
NOVA ÁGUIA, nº 20, 2º semestre de 2017, no prelo).
Uma coisa é, porém, aceitar
isso, outra, completamente diferente, é sugerir que o seu paradigma de
sociedade multi-racial é, de alguma forma, afim do paradigma social
nazi-fascista. O próprio Gilberto Freyre, de resto, assumiu que a sua proposta
podia e devia ser lida, no Brasil, como uma resposta aos “nostálgicos da
colonização holandesa” e “alemã” (in O
Mundo que o Português criou, Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora,
1940, p. 52).
Esses, sim, defendiam uma
colonização abertamente racista e segregadora. Por isso, ainda hoje espanta ver
no Brasil pessoas, algumas até de ascendência africana, que proclamam que o
grande azar do Brasil foi ter sido criado por Portugal e não pela Holanda ou pela
Alemanha. Decerto, não têm consciência de que o Brasil teria sido um país muito
parecido com a África do Sul. Não que isso tenha feito da sociedade brasileira
uma sociedade imune ao racismo. Mas, uma vez mais, importa não confundir os
paradigmas – que, neste caso, são particularmente contrastantes.
E, quanto ao nexo salazarista,
também é mais do que tempo de relermos a obra de Gilberto Freyre libertos desses
preconceitos e sectarismo ideológicos – porta, de resto, já aberta pelo
insuspeito Mário Soares: “Agora,
passados os anos e lendo novamente Gilberto Freyre, abstraindo Salazar e as
guerras coloniais, aquilo que ele disse é verdadeiro. Aquilo que ele disse
sobre luso-tropicalismo é verdadeiro, é uma cultura própria e temos que
desenvolvê-la no futuro.” (cf. Vamireh Chacon, "O Futuro Político da
Lusofonia", Lisboa, Verbo, 2002, p. 49).
Há uma nova moda politicamente
correta a emergir, de forma cada vez mais ruidosa, no nosso discurso
político-mediático: a de considerar Portugal um país racista. Há mesmo
políticos de alguns partidos que parecem ter particular gáudio em ecoar tal
consideração. Nas suas mentes, Portugal continua a ser um país atrasado, ainda
longe do cume civilizacional da Europa, sendo esse alegado “racismo” um dos
supostos sintomas do nosso atraso.
Esse (cada vez menos) tácito
discurso, de tal modo provinciano, não resiste, porém, à crítica. Decerto,
Portugal terá alguns atrasos nas mais diversas áreas em relação a outros países
europeus. Mas não, de todo, nesta área. Quem conhece minimamente a Europa não
poderá senão concordar connosco: Portugal é, provavelmente, para não dizer
decerto, o país menos racista da Europa. Defender esta evidência não significa,
obviamente, dizer que não há racismo em Portugal. Significa apenas afirmar que,
comparando com o que acontece na restante Europa, o racismo em Portugal é bem
menor.
Decerto, isso não acontece por
razões genéticas. Não há nenhum “gene lusitano” menos propenso ao racismo. O
que acontece, muito naturalmente, é que a nossa cultura, tal como se foi
sedimentando ao longo dos séculos, desenvolveu essa marca axial: tal como
acontece com qualquer outro povo que, não se tendo cingido às suas fronteiras e
cristalizado uma qualquer homogeneidade étnico-identitária, se foi habituando,
ainda que nem sempre de forma pacífica, a lidar com a alteridade: étnica,
linguística, cultural, religiosa, etc.
Apenas um exemplo: há não
muitos anos, ocorreu um aceso debate em França sobre a alegada
descaracterização da principal selecção de futebol, com um crescente número de atletas
vindos do Ultramar. Pois bem: em Portugal, nunca houve um debate público
similar e um dos nossos maiores símbolos futebolísticos continua a ser Eusébio.
É a nossa própria identidade histórico-cultural que se tornou mestiça, sendo
por isso absurdo um debate como o que ocorreu em França. É igualmente por isso
que, em Portugal, ao contrário do que acontece em muitos países europeus (bem
sabemos que, nalguns casos, com alguns problemas que nós não temos), não há
partidos com uma agenda racista com expressão.
Bem sabemos igualmente que por
vezes ocorrem incidentes que parecem pôr em causa o panorama que aqui traçámos:
como foi o incidente (grave, a nosso ver) ocorrido com a nossa Polícia na Cova
da Moura. Também não ignoramos que, na grande Lisboa e noutras áreas
metropolitanas do país, persistem bolsas de pobreza com alguns contornos não
apenas económico-sociais, mas também étnicos. Todos esses problemas, porém, que
existem e não devem ser escamoteados, não podem pôr em causa todo o restante,
que não é pouco, até porque pode e deve constituir-se como um dos nossos
maiores motivos de orgulho perante os outros países da Europa. Ao menos nesse
plano, somos nós o exemplo.
Renato
Epifânio
Presidente
do MIL: Movimento Internacional Lusófono
5 comentários:
Eu não creio que exista algum país no mundo onde cem por cento da população seja racista ou xenófoba. Mas me parece que em muitos países há gente que defende purificação racial ou étnica ou cultural, e há gente com a mente aberta para culturas e pessoas estrangeiras, ou de outras raças ou etnias, pessoas tolerantes, multiculturalistas. Eu acredito que isso tem a ver com a percepção que cada pessoa tem da realidade. Racismo, etnicismo e xenofobia estão presentes também em países de terceiro mundo, não é exclusividade de países desenvolvidos. Em países desenvolvidos asiáticos como Japão e Coreia do Sul, se procuramos, vamos encontrar pessoas que não querem estrangeiros habitando lá. E vamos encontrar também pessoas que gostam de estrangeiros.
A maioria dos Portugueses é gente educada, bem esclarecida, tolerante, sabe se relacionar bem com outros povos, outras culturas, se o estrangeiro se comportar bem em Portugal, obedecer às regras de convivência social do país, ter respeito às leis, vai ser bem tratado pela maioria da população de Portugal. A maioria dos Portugueses que conheci pessoalmente ou que eu soube da existência através da internet são pessoas gentis.
bem interessante a atinado, cheio todo ele do bom siso
alexandre banhos
Execelente texto, claro e verdadeiro.
Nada a mais a dizer, acrescentando parabéns ao autor, presidente do MIL
Abraço amigo
Luisa Timóteo
Interessantes textos que clarificam várias questões...
Concordo e parabenizo o autor pela forma culta, equilibrada e expedita que usou no tema
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