Numa visão
estrita, para não dizer estreita, do existencialismo, tal como ele se
configurou enquanto corrente filosófica e cultural no século XX, Fidelino de
Figueiredo não foi de todo um existencialista, mesmo quando defendeu que os
“existencialistas franceses têm razão indiscutível, quando matam com certo
desdém realista esse perturbador e imaginoso problema das essências, coisa tão
vã como a querela dos ‘universais’ (…) à qual de resto se articula (in Símbolos & Mitos, Europa-América,
1964, p. 58).
Recordemos
que, nessa célebre querela, se confrontaram, no essencial, duas correntes: uma
ainda de matriz platónica, para quem os Universais existem (não apenas do ponto
de vista temporal como, sobretudo, ontológico) “antes” das coisas (universalia sunt ante res); outra de
cariz nominalista, para quem os Universais são considerados como meros nomes,
enquanto criações da mente, sem qualquer referente prévio – existindo, assim,
“depois” das coisas (universalia sunt
post res).
No entanto, a
deriva egóica, para não dizer egocêntrica ou subjectivista do existencialismo
contemporâneo já não mereceu, de todo, a sua adesão – como chegou a escrever:
“Esses existencialistas já não têm sombra de razão quando com mau humor negam a
existência do mundo fora do nosso espírito, da sua representação subjectiva e
da sua utilização egocêntrica. Por aqui os existencialistas franceses acordam e
reforçam o seu parentesco fenomenológico e vão entroncar-se, queiram-no ou não,
na velha corrente idealista, e, se analisássemos fundamente essa atitude,
contrariariam o seu antiessencialismo, como se perdessem o pé num redemoinho” (idem, p. 58).
Daí, de
resto, a sua inequívoca demarcação de duas das mais prominentes figuras do
existencialismo: Albert Camus e Jean-Paul Sartre – ainda nas suas palavras: “O
livrinho de Camus [O mito de Sísifo]
contém um monstruário dos absurdos da existência humana – sem grande acerto na
escolha nem na caracterização de cada um” (idem,
p. 59); “No código da doutrina, o tratado L´Être
e le Néant, de Sartre, fervilham, como de costume, nos escritos de
metafísica, os paralogismos que levam à paradoxia e às logomaquias, as petições
de princípio, os postulados gratuitos e o subjectivismo impressionista” (idem, p. 60)
Ainda assim,
encontramos na sua obra elementos que nos poderão levar a um
neo-existencialismo, mas já devidamente depurado dessa deriva egóica, para não
dizer egocêntrica ou subjectivista, pelo próprio Fidelino de Figueiredo
denunciada e renegada. Falamos sobretudo da importância que dá ao espaço e ao
tempo – mais do que ao tempo, à história – e do papel do ser humano enquanto
construtor da história e da cultura. Daí que, ao podermos falar de um
neo-existencialismo a propósito de Fidelino de Figueiredo, possamos
cumulativamente falar de um neo-humanismo. Eis, em suma, a tese que
procuraremos aqui verificar – abordando, sucessivamente, os conceitos de
“cultura”, “tradição”, “heroísmo” e, finalmente, o seu inovador conceito de
“imagem-força”.
*
Comecemos,
então, pelo conceito de cultura de Fidelino de Figueiredo – nas suas palavras: “Cultura
é o conjunto de ideais condutores, o sistema de juízos e valores, de opções e
preferências, que orientam uma época; é a imagem que cada homem civilizado se
forma do mundo e do passado da sua espécie, e o plano de actuação futura que se
reserva” (Menoridade da Inteligência,
Imprensa da Universidade de Coimbra, 1933, pp. 50-51)
Ainda segundo
Fidelino de Figueiredo, esse “conjunto de ideias condutores”, que se
consubstancia, geração após geração, num “plano de actuação futura”, não se faz
necessariamente, nem sequer idealmente, por renegação do passado, antes no
respeito da tradição, pelo menos enquanto esta é, nas suas palavras, “uma força
viva”, “sangue quente a circular no organismo social, continuidade profunda e
involuntária, como o laço familiar, e não doutrina artificiosamente
reconstituída pela nostalgia estática ou pela renúncia descoroçoada” (idem, p. 115)
Eis, ainda
segundo Fidelino de Figueiredo, a tarefa das elites culturais de qualquer povo,
que se devem reger por essa lógica criadora – ou criacionista, como diria
Leonardo Coimbra –, senão mesmo por uma lógica de heroísmo – ainda nas suas palavras:
“Por heroísmo entendo eu, não só a sua forma marcial, mas todas as
potencialidades humanas levadas ao máximo, o predomínio dos melhores, a
reconquista dos direitos da inteligência, da força moral, do ideal interior,
para fazer impor e triunfar uma ideia: a capacidade de curvar, obediente, a
argila humana às dedadas do génio” (Torre
de Babel, Empresa Literária Fluminense, 1925, p. 172).
Entrevemos
aqui toda a importância dada à cultura, na sua prevalência sobre todos os
demais planos – nomeadamente, os planos social, económico e político. Daí
também, enfim, o seu conceito de “imagens-força”
(cf., por exemplo, Interpretações, Editorial
Nobel, 1944, p. 30). Correspondem estas às “visões do mundo” que,
historicamente, se tornaram hegemónicas ao longo dos séculos – desde a visão
mítica do mundo, passando pela visão clássica (de matriz aristotélica), até à
visão do Renascimento e da Contemporaneidade (onde, para Fidelino de
Figueiredo, a figura de Einstein, e da sua física relativista, avulta). Pois
bem – perguntamos: não será tempo de se abrir uma nova visão do mundo, uma
visão não diremos “neo-existencialista” mas, de forma assumida e descomplexada,
“neo-humanista”?
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