Na sua obra A Alegria, a Dor
e a Graça, Leonardo Coimbra reconhece que “o primeiro aspecto do Ser é
incompatível com um Deus criador todo-poderoso e omnisciente”. Reconhecendo
isso – mais do que isso: que “o mal existe como facto” –, a verdade é que
Leonardo logo de seguida se interroga, interrogando-nos ao mesmo tempo: “…mas
terá ele realidade bastante a determinar um sistema de mundos? Não estará o mal
exactamente na escravidão com que o olhamos, na falta de interpretação capaz de o explicar?”.
A resposta, se pode haver resposta, está, como sempre, como quase
sempre, contida na própria interrogação. Se, por um lado, “o mal existe como
facto”, por outro, ele existe como um facto porque não há argumentos. Leonardo,
aliás, é o primeiro a assumi-lo. Daí o falar-nos do “mais inabordável aspecto
do mal”, que nem sequer, como defende, a hipótese da “queda divina” –
defendida, por exemplo, por Sampaio Bruno na sua A Ideia de Deus – pode explicar. E isto porque, no seu entender,
essa “queda” ou “diminuição” só poderia advir de “um acto de querer” do próprio
“Deus”, o que seria absurdo; na hipótese contrária, “regressaríamos, pelo
menos, a um dualismo divino”.
Excluídas todas as hipóteses de explicação, resta-lhe pois apenas,
in extremis, a saída da “fé” ou, como
prefere dizer, da “aposta”: “Teremos, então, uma realidade em que o mal é
aparente e encontra justificativa explicação numa mais profunda apreensão da
realidade.”. Eis a “saída” que Leonardo Coimbra nos irá reiterar já na terceira
e última parte desta sua obra ao formular a seguinte interrogação: “Por que não
havemos, pois, de pensar que a nossa visão primitiva é má e que o universo,
contendo os nossos valores, é mais que nós, e um grande sentido oculto deve possuir?”.
Ao contrário do que alguns poderão considerar, não deriva esta
“saída” de uma desistência, de uma resignação. Deriva antes, como dissemos, de
uma “aposta”, que Leonardo Coimbra de forma expressa enuncia: “‘Il faut
parier…’ por Deus ou contra Deus, pelo significado ou pela insensatez do
mundo.”. Como Leonardo logo de seguida nos acrescenta, esse é, aliás, um
desafio que o próprio “Deus” nos dirige: “A tremenda disjunção, que Pascal põe
diante do homem planetário, é, com efeito, a mais profunda, bela e dolorosa
manifestação da tragédia da consciência. Parece que, ao erguer-se das
profundidades da alma o formidável dilema, o Invisível nos dirige, de frente,
uma brusca e terrível intimação: Homem decide-te; é a ti, ao teu obstinado
proselitismo, que, porventura, cumpre dar valor ao Universo.”.
Eis, efectivamente, do que aqui se trata: não de esperar por uma
qualquer revelação divina que enfim nos desocultasse esse “grande sentido que o
universo deve possuir”, mas de desocultarmos, nós próprios, esse “sentido”,
esse “grande sentido”, assim cumprindo essa “mais profunda apreensão da
realidade”. Não se trata pois aqui, nessa medida, de uma atitude de
desistência, de resignação, mas, ao invés, de uma atitude voluntariosa,
temerária, tão temerária que Leonardo chega a qualificá-la como “heróica”, como
“quixotescamente heróica”. Para Leonardo, o homem não é, aliás, senão isso: um
“Quixote”, um “Quixote do Infinito”. Um “Quixote” que, contudo, como de forma
expressa ressalva Leonardo, à partida “se ignora”.
Ignorando-se, não pode cumprir ele – o humano – a sua destinação:
dar sentido ao próprio Universo, desde logo, como escreveu o seu discípulo José
Marinho, à “nossa forma de ser passageira”. Para todo aquele que se assume como
“Quixote do Infinito”, eis, com efeito, segundo o próprio Leonardo Coimbra, do
que se trata: de protestar por esse sentido, de exigir essa “resposta do Ser à nossa atitude quixotesca
dentro da vida”. Mais ainda, trata-se, em última instância, como diria
Teixeira de Pascoaes, de exigir que “Deus” passe a existir. Esse é, aliás, nas
palavras do poeta-filósofo, o real fito do “crente verdadeiro”: ele não crê em
“Deus” porque ele exista – dado que, “se ele existisse, a nossa crença seria
inútil ou estéril” –, mas, precisamente, “como protesto contra a sua não
existência”, na quixotesca premissa de que “se a nossa crença fosse absoluta,
Deus existiria absolutamente”. Eis, em suma, porque falamos aqui de um
“quixotismo metafísico”.
Post Scriptum: Para o Congresso
Internacional Cervantes & Shakespeare (1616): 400 anos no diálogo das Artes
— que decorrerá, em Portugal, na Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa, em Novembro do corrente ano. Para mais informações:
www.400cervantes-shakespeare.webnode.com
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