No prólogo à sua obra O fim histórico de Portugal (Ed. Nova
Arrancada, 2000), Amorim de Carvalho assume, de forma eloquente, a sua
desilusão com Portugal – nas suas palavras iniciais: “Voluntariamente exilado da
minha pátria, perfeitamente desiludido, desenganado, como é que pude escrever
um livro como este?”.
Não se reconhecendo nem na
situação nem na oposição – “sentia-me entre dois muros que me pareciam
inultrapassáveis: o regime político a vigorar em Portugal e o totalitarismo
comunista” (ibid., p. 15) –, Amorim de Carvalho acabou por sair do país ainda
na década de sessenta, permanecendo em França até 1976, ano da sua morte.
No primeiro capítulo desta sua
obra, começa por definir alguns conceitos fundamentais, desde logo o da
“dualidade massa-elite como uma dualidade existindo em cada homem” (ibid., p
19) – ainda nas suas palavras: “Se a condição elíptica não existisse, o ‘homem’
não seria senão o mais inteligente dos animais: entre o homo faber e o animal faber
(…) não haveria, fundamentalmente, senão uma diferença quantitativa do ponto de
vista intelectual” (ibid., p. 20).
Por outro lado, como logo de
seguida acrescenta: “Se a condição humana fosse inteiramente elíptica, isto é,
se a condição animal original do homem tivesse desaparecido, a sua vida social
seria inteiramente espiritual e a sociedade uma realização de santidade sem
problemas de conflitos sociais, ou os conflitos se limitariam a um movimento
regular de forças e valores espirituais. Ora os factos desmentem uma e outra
hipótese, determinando uma espécie de dialéctica psicológica, em que o factor
massa (subdeterminante) e o facto elite (superdeterminante) estarão em
conflito, o primeiro podendo predominar sobre o segundo, ou vice-versa”.
Da sobre-determinação ou
predominância do factor elite sobre o factor massa, emerge, de resto, para
Amorim de Carvalho, a “cultura”, marca distintiva do humano em relação ao
meramente animal – ainda nas suas palavras: “Quando o ‘homem’ pôde reflectir na
sua situação, na sua significação e no seu destino no mundo, ultrapassando os
interesses materiais da condição biológica e animal, e da sua condição
económica onde aquela se prolonga, o ‘homem’, então, realizou a cultura, e com
esta ele surge verdadeiramente como homem” (ibid., p. 21).
Daí, enfim, a discordância que
de seguida expressa relativamente a Ortega y Gasset: “a dualidade massa-elite,
em cada homem, tornou possível uma progressiva culturalização, isto é,
elitização das massas. O que me obriga a não aceitar a tese de Ortega y Gasset,
é que ele considera a distinção entre o homem-massa e o homem-elite como sendo
dois casos completamente diferentes e separados: a maioria dos homens é massa e somente massa; a minoria é elite e somente elite, - o que nos
impede de claramente explicar o fenómeno da comunicação entre a maioria e a
minoria, e os movimentos sociais em que as duas forças do homem concreto, real,
se indeterminam, um delas funcionando como a subdeterminação e a outra como a
superdeterminação”.
II
No segundo capítulo da sua
obra, Amorim de Carvalho usa esta grelha dual (massa-elite) para explicar a
própria génese de Portugal: “A fundação de Portugal como nacionalidade foi um
dos casos mais flagrantes do que se acaba de dizer; foi a obra da vontade firme
de indivíduos de elite” (ibid., p. 26).
No caso do nosso país, com
efeito, a explicação meramente material ou geográfica não parece, de todo,
suficiente – como logo de seguida acrescenta Amorim de Carvalho: “A separação
entre a França e a Espanha é geograficamente explicável (ainda que ameaçada
pelos árabes até à batalha de Poitiers), mas já não se poderá dizer o mesmo em
relação à separação entre Portugal e Espanha, - o que levou Sanchez-Albornoz a
falar do carácter fortuito da nacionalidade portuguesa”.
Entenda-se aqui fortuito como
não condicionado por qualquer factor de ordem material: geográfico ou outro.
Como nos é reiterado: “sem uma economia auto-suficiente, sem um sentimento da
nacionalidade das massas, sem uma geografia apresentando fronteiras naturais,
Portugal tornou-se uma nação apenas pela vontade superdeterminante de uma elite” (ibid., p. 29).
Para as massas, com efeito,
não parecia fazer diferença a fundação de Portugal: “Politicamente, o povo
cristão em território português era, sem dúvida, indiferente a que Portugal se
tornasse independente ou ficasse sob o poder de Afonso VI de Leão, mantendo-se
no entanto fiel ao cristianismo. Uma vez mais, a história política, e, por
conseguinte, social, foi conduzida pelas elites” (ibid., p. 30); “As massas (…)
eram indiferentes a que as suas terras pertencessem a um ou a outro Estado:
Portugal ou Leão-Castela. Elas já não o serão mais tarde, quando Portugal for
já uma nação bem construída pela aristocracia (ibid., p.32.).
Eis, precisamente, a tese que
Amorim de Carvalho vai desenvolver no capítulo seguinte da sua obra: “No
momento da fundação de Portugal, não existia, nas massas (os vilãos e os servos
da gleba), um verdadeiro sentimento de pátria; apenas existia, verdadeiramente,
o sentimento económico ou, para empregar expressão mais forte, biológico, da
ligação à terra que trabalhava./ Nas elites (a aristocracia) as coisas
passavam-se, no começo, duma maneira bem diferente; elas tinham o sentimento do
seu domínio público sobre o território com o qual se confundia a massa popular”
(ibid., p. 34).
O mesmo, de resto, se verifica
em 1580, quando, como se sabe, perdemos a nossa independência – ainda segundo as
incisivas palavras do próprio autor d’ O
fim histórico de Portugal: “O comportamento das massas ficou pelo nível
primário de desordens deploráveis criando um clima de terror que fazia com que
as ‘classes mais elevadas’ vissem no espanhol a libertação. E durante a
anexação de Portugal à Espanha, as desordens populares são mais desordens de
fome do que de fim patriótico, sendo, aliás, facilmente esmagadas. As elites
tiram a lição: seria preciso que elas fizessem o golpe de estado, fora da
intervenção das massas – e, uma vez mais, Portugal recobra a sua independência
pela vontade das suas elites (1640)” (ibid., p. 41.)
III
Ainda no terceiro capítulo
desta sua obra, salienta bem Amorim de Carvalho o quanto a independência de
Portugal se alicerçou na sua dimensão ultramarina: “Mas esta retomada da
independência não teria qualquer validez histórica, não teria qualquer razão de
ser, se Portugal não recuperasse a maior parte do seu domínio colonial. Esta
recuperação não foi proeza menos importante do que a dos Descobrimentos: teve
que se fazer face a Estados militarmente mais fortes, tais como a Inglaterra, a
Holanda e a França, que, durante a anexação de Portugal à Espanha, atacaram e
mesmo conquistaram vários territórios portugueses do Ultramar. Tudo se fez,
graças a esforços diplomáticos, militares e materiais extremamente difíceis,
muitas vezes contras as massas populares.” (ibid., pp. 41-42).
Eis, ainda segundo Amorim de
Carvalho, a motivação maior da revolta de 31 de Janeiro de 1891 e do nosso
envolvimento na Primeira Guerra Mundial: “A tentativa revolucionária, militar e
republicana, de 31 de Janeiro de 1891, teve a sua origem imediata na fraqueza
do governo monárquico em face do ultimatum
dirigido a Portugal pela Inglaterra, que pilhou os territórios africanos
compreendidos entre o Niassa e a Zambézia” (ibid., p. 42); “A participação
militar de Portugal na guerra europeia de 1914-1918 foi, ainda, um meio, para o
regime republicano instaurado em 1910, de defender o nosso Ultramar, contra a
avidez evidente da Inglaterra. Pouco antes, a Inglaterra e a Alemanha tinham
previsto, por acordo secreto, a partilha, entre elas, dos territórios
portugueses de África” (ibid., 43).
Toda essa motivação maior da
nossa política externa acabou, como se sabe, por soçobrar na Revolução de 25 de
Abril de 1974, facto que Amorim de Carvalho lamenta da forma mais violenta,
falando inclusive de “traição”: “Tendo perdido o seu Ultramar, pela própria
traição do seu exército encarregado de o defender, Portugal é hoje um Estado
sem significação no conjunto das nações. Transformado, senão de direito, pelo
menos de facto, numa província da Península Ibérica, Portugal não beneficia (até onde?) senão de uma independência política
que é ainda a herança moral do seu passado histórico./ A lição que se deve
tirar, é que Portugal é uma pátria que a vontade dos portugueses dignos deste
nome (verdadeiras elites) construiu e sustentou, e que a vontade de uma outra
raça moral de portugueses (falsas elites) demoliu” (ibid., 44). Eis, em suma, a
tese que Amorim de Carvalho irá desenvolver nos últimos capítulos da sua obra e
que justifica o próprio título da mesma.
IV
Não pretendendo aqui revisitar
todo o processo de descolonização – concedemos, à partida, que ele foi de facto
exemplar (leia-se: exemplarmente mau) –, permitimo-nos, porém, discordar de
Amorim de Carvalho quanto à sua qualificação de “fim histórico de Portugal”.
A nosso ver, com efeito, por
pior que tenha corrido o processo de descolonização (como de facto correu),
isso não significa que Portugal tenha acabado aí, ou, pelo menos, que Portugal
tenha acabado irreversivelmente aí. Há, ou pode haver, ainda um futuro.
Sendo que, ao falarmos de
futuro, do futuro de Portugal, não falamos, de todo, do Portugal presente – nas
palavras de Amorim de Carvalho: “um Estado sem significação no conjunto das
nações”, uma “província da Península Ibérica”, ou, senão da Península Ibérica,
decerto da União Europeia. Esse não é, certamente, a nosso ver, um Portugal que
faça jus a toda a nossa história.
Passados já mais de quatro
décadas sobre o processo da descolonização, julgamos, porém, que Portugal pode
ter ainda uma existência história que nos honre. Apesar das feridas que ainda
subsistem – não esquecemos que a nossa descolonização deu azo a várias guerras
civis, ainda não completamente resolvidas (veja-se, por exemplo, o caso de
Moçambique) –, Portugal poderia ainda tomar a iniciativa de promover um
verdadeiro caminho de convergência com os restantes países de língua portuguesa
– não só no plano cultural, como ainda nos planos social, económico e político.
Obviamente, no século XXI,
esse caminho só poderá realizar-se respeitando a independência de cada um dos
países de língua portuguesa. Mas se todos eles estiverem dispostos a encetar
esse caminho de convergência, como parecem estar, então Portugal poderia de
novo ter, realmente, uma existência histórica, na promoção de um novo espaço
linguístico, cultural, social, económico e político, que pudesse ser até, como
sonhou Agostinho da Silva, um exemplo para o resto do mundo.
Na sua perspectiva, assim se
cumpriria a futura “Pátria de todos nós”: “Do rectângulo da Europa passámos para algo
totalmente diferente. Agora, Portugal é todo o território de língua portuguesa.
Os brasileiros poderão chamar-lhe Brasil e os moçambicanos poderão chamar-lhe
Moçambique. É uma Pátria estendida a todos os homens, aquilo que Fernando
Pessoa julgou ser a sua Pátria: a língua portuguesa. Agora, é essa a Pátria de
todos nós.”. Conforme afirmou ainda: “Fernando Pessoa dizia ´a
minha Pátria é a língua portuguesa’. Um
dia seremos todos — portugueses, brasileiros, angolanos,
moçambicanos, guineenses e todos os mais — a dizer que a nossa Pátria é a língua portuguesa.”.
Daí, ainda, o ter-se referido
ao que “no tempo e no espaço, podemos chamar a área de Cultura
Portuguesa, a pátria ecuménica da nossa língua”, daí, enfim, o ter falado de
uma “placa linguística de povos de língua portuguesa — semelhante às
placas que constituem o planeta e que jogam entre si”, base da criação de
uma “comunidade” que expressamente antecipou: “Trata-se, actualmente, de poder
começar a fabricar uma comunidade dos países de língua
portuguesa, política essa que tem uma vertente cultural e uma outra, muito
importante, económica”. Eis, em suma, a nosso ver, o que poderá estar para além
do “fim histórico de Portugal”.
Agenda de Fevereiro: Colóquio
sobre Agostinho da Silva - Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (dias
16 e 17); Simpósio de Homenagem a Manuel Ferreira Patrício, sócio honorário do
MIL: Movimento Internacional Lusófono - Universidade de Évora (Colégio do
Espírito Santo), Palácio da Independência (Lisboa) e
Faculdade de Letras da Universidade do Porto (dias 23, 24 e 25). Programa disponível
no sítio do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira: www.iflb.webnode.com
4 comentários:
Interessante e sem dúvida com suficiente fundamento desde |ogo |ógico.
Devemos ser o País que em que mais se estuda a razão da nossa independência e o porquê de existirmos como nação. Como se não o merecêssemos... Até parece que foi um "favorzinho" da manta de retalhos que temos como vizinho, permitir a nossa independência. A nossa independência é suprema a qualquer outro valor, isso é inquestionável. Portugal é Portugal e basta. Independente como qualquer outro estado, com uma razão para existir e sem necessidade de justificação da mesma.
Ab
Nunca li visão mais absurda da fundação e consolidação da independência da nossa pátria. Uma visão doentia e bolorenta da nossa História, esta do Senhor Amorim de Carvalho. Haja compaixão...
Muito interessante este ponto de vista. Vou meditar sobre ele.
E entretanto partilha-lo no Facebook.
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