O personalismo social-substantivista dogmático, que pensa a pessoa como substância, pensa-a também como um ser de natureza ou essência exclusivamente social: neste sentido fala sobretudo da pessoa como sendo exclusivamente uma «pessoa social». Já ARISTÓTELES definira o homem exclusivamente como zoón politikon, animal social e político ─ e nisso se esgotaria toda a sua essência: na verdade, na cidade antiga, onde, de resto, não se distinguia o «social» do «político», a identidade humana esgotava-se toda com o ser cidadão, com o ser membro da pólis e de nesta participar em total identificação e fusão com ela. E aquele personalismo substantivista e comunita-rista ou social dogmático define também a forma política e social mais própria da realização do verdadeiro humano ─ que é sem dúvida a comunidade ─ como um ser de natureza hipostática e substantivista (ôntica) ─ o que chamam de o ser social ─, contraposto ou supraposto às pessoas individuais, já que o bem comum, por que se definiria a suprema axiologia dessa comunidade, é pensado, não como uma ideia regulativa aberta, mas como uma verdadeira «essência» ou «substância», monisticamente definida, e definitivamente suprapessoal ou hierarquizada em termos de se relegar os valores e interesses pessoais para o mero terreno dos «egoísmos» particularistas, irracionais e fragmentários dos vários indivíduos empíricos.
Só que, por um lado, a lucidez crítica que devemos a IMMANUEL KANT, de ter definido a natureza humana, sob este aspecto, como a de uma sociabilidade insociável (ungeselligegeselligkeit), veio, com o advento da Modernidade, mostrar que a «essência» do ser pessoal não tem uma só valência, ou melhor, que existe nela uma fundamental ambivalência interna, e assim também uma dimensão de insociabilidade, pelo que poderemos agora tranquilamente dizer que, se de algum modo todo o social é humano, a verdade indesmentível é que nem todo o humano é social.
Também SIGMUND FREUD demonstrou essa ambivalência, ao mostrar a dualidade de direcções que pode tomar o investimento libidinal pessoal (tendências «egoístas» e tendências «altruístas», para falar de um modo algo grosseiro e simplificado) e a antinomia que, por um lado, existe entre o homem e a sociedade constituída, apesar da, por outro lado sua aspiração à comunidade.
E FRANCIS FUKUYAMA, num dos seus últimos livros (Confiança: Valores Sociais e Criação de Prosperidade, 1996), reiterando a sua tese hegeliana do humano «desejo de reconhecimento», diz o seguinte: «(…) Os seres humanos são, simultaneamente, indivíduos altamente egoístas e criaturas com um lado social que abomina o isolamento e rejubila com o apoio e o reconhecimento por parte de outros seres humanos» ─ os itálicos são nossos.
E não estará nesta fundamental e incontornável ambivalência humana a verdade intrínseca e a razão de ser, simultaneamente, tanto da perspectiva consensualista (PLATÃO, KANT, ROUSSEAU, DÜRKHEIM, TALCOTT PARSONS, estrutural-funcionalismo, etc.), como da perspectiva conflitualista (ARISTÓTELES, THOMAS HOBBES, HEGEL, MARX, RALF DAHREN-DORF, DAVID LOCKWOOD, etc.), que sempre se têm defrontado na concepção básica da sociedade ?
Quanto à impropriedade de se definir o ser humano como de uma «natureza exclusivamente social», ou como um ser apenas «sociável», ou que se defina todo pelo «social», bem como sobre os limites (internos e externos) de uma pretensa «socialização integral» do humano, veja-se o excelente livro do sociólogo norte-americano PETER L. BERGER, intitulado Perspectivas Sociológicas: Uma Visão Humanística, 16ª. edição brasileira, Petrópolis, 1996, especialmente o Capítulo intitulado: A Sociedade como Drama, págs. 137 e seguintes, onde se fala da «má-fé» (em sentido sartriano) que pode constituir a «fuga à liberdade própria» para a inautenticidade (o das Man heideggeriano) do aconchego e da segurança tranquilizadora dos «papéis» e «lugares comuns» que nos oferece a própria sociedade.
VIRGÍLIO CARVALHO.
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