“- Há uma data na varanda nesta sala – disse
Germana – que lembra a época em que a casa se reconstruiu. Um incêndio, por
alturas de 1870, reduziu a cinzas toda a estrutura primitiva. Mas a quinta é
exactamente a mesma, com a mesma vessada, o mesmo montado, aforados à Coroa há
mais de dois séculos e que têm permanecido na sucessão directa da mesma família
de lavradores.
- Uma espécie de aristocracia ab imo. – E Bernardo riu-se, cheio duma
ironia afável e quase distraída; tirou do nariz as lunetas, muito maquinal,
colocou-as de novo, ajustando as molas de ouro nos vincos que pareciam o sinal
de unhadas, e, com um piscar precipitado como quem bruscamente transita da
obscuridade para a luz, disse ainda – «Ab
imo, da terra…», pois ele considerava a cultura como um privilégio pessoal,
e nunca perdia a oportunidade de se mostrar generoso, transmitindo-a. Pertencia
ele ao ramo da família que do capitalismo ascendera ao posto imediato da
intelectualidade e nisso fixara uma aristocracia. Pois que é a aristocracia
senão o degrau mais alto que uma sociedade deseja atingir, a supremacia de
determinada classe sobre as outras, a imposição dos seus valores, sejam eles de
força, de trabalho, de espírito, conforme a época que lhes é propícia? A
família de Bernardo Sanches tinha adquirido um estado aristocrático, o que quer
dizer que estacionara no cumprimento de determinada herança de hábitos, frases,
opiniões que, uma vez desprendidas da personalidade que os fizera originais,
restavam agora somente como snobismos e ocas imitações. Enfim, o talento da
imitação – pensava Germana – chegava a ser tão característico como uma
originalidade, não só em determinadas famílias, como, mais genericamente, em
determinados povos. Bernardo Sanches era o exemplo duma raça heróica e
magnífica enquanto a sua história fora uma questão de sobrevivência, mas que,
com a segurança e o conforto, resultara numa brilhante mediocridade. Germana,
sua prima, era, por seu lado, um tipo fatídico das degenerescências, o artista,
o produto mais gratuito da natureza e que se pode definir como uma inutilidade
imediata. Era ela uma criatura paciente, tímida, e que inspirava confiança sem
limites. Os artistas, que, em geral, se fazem notar pela sua excêntrica
banalidade e que se distinguem dos burgueses porque vivem as extravagâncias que
os burgueses reprimem em si próprios, não se pareciam nada com Germa. Ela tinha
o espírito de parecer vulgar. Um dos seus prazeres consistia em analisar-se
como o conteúdo de todo um passado, elemento onde reviviam as cavalgadas das
gerações, onde a contradança das afinidades vibrava uma vez mais, aptidões,
gostos, formas que, como um recado, se transmitem, se perdem, se desencontram,
surgem de novo, idênticos à versão de outrora. Ela balançava-se activamente
numa velha rocking-chair que, a cada
impulso mais violento, pulava no sobrado, onde se acumulavam pilhas de maçãs
sustidas por tábuas muito esfareladas de serrim. Tal como Quina – pensou. E,
absorta, pôs-se a murmurar um lento monólogo, olhando à sua frente o caixilho
da porta que comunicava com a cozinha, onde se via a pedra da lareira, arrumada
e varrida de cinza.”
Primeiras linhas do romance A Sibila de Agustina Bessa-Luís
Agustina Bessa-Luís, A Sibila, Lisboa, Guimarães Editores, 1987.
Sem comentários:
Enviar um comentário