“A meus pés,
a menos de tiro, passava a ribeira sobre areal e terras de paul, um cabelo de
água com a estiagem, onde as rolas vinham espenujar-se ao sol poente.
Marginava-a da banda de lá uma lameira de que só os juncos e as rabaças
verdejavam, porque são ervas indigestas ao vivo e lhe desbotam os dentes. De
longe em longe, vinha para ali apascentar as vacas uma pastora, a quem eu muito
admirava a cinta pura e flexível e o jarrete nu sob a saia de grande roda. Não
era a zagala almiscarada das églogas, a suspirar por Sileno, ou das pinturas
galantes, com um borrego de chifres dourados e laço de seda ao pescoço a
pascer-se entre boninas; mas uma zagala das serras, na primeira adolescência,
que, ao pressentir-se só no descampado, se lançava como um animalzinho à franca
na natureza. Muitas vezes a vi, de cócoras à beira de água, abrir a saia e o
colete e espulgar-se. Seu corpo era viçoso e bem entroncado, da cor do trigo
quando está na eira. Catava-se, coçava-se, e com ingénua curiosidade punha-se a
arrepelar o velo loiro e os mamilos vermelhos dos seios. E, núbil e desejosa,
eu antevia-a a embalar um berço, ao som magoado da Rosa Tirana. Na erva rapada
até ao sabugo, as vacas tasquinhavam, regando céu e terra do soluço das
campainhas; ela, com um caco de pente, desenriçava as negras tranças, ou de
saia arregaçada até às virilhas, chapinhava pela corrente fora atrás dos
peixinhos. Maciças e tentadoras eram as coxas, mas os requebros inocentes como
de pomba e descuidados como de ninfa. E porque assim era, porque seu jeito se
fundia na sinceridade da natureza, meus olhos experimentavam aquelas inefáveis
e puras delícias do anjo, ao surpreender no toucador à Virgem Maria, e não
outras.
No pasto
pelado, sem detença de maior, as vacas moscavam; a boieira despedia atrás
delas, e só então sentia a luxúria atear-se-me nos nervos, acesos pelo lume
vermelho do lenço vermelho a esvoaçar.
Eu recaía na
soledade, em que tudo, até o frémito remoto duma asa de vespa me parecia dizer:
cá vou! Olhando ao longe, por entre os troncos, meu espírito emornecia,
penetrado do estado sonolento da terra inteira. A tarde dobava, e nuvens
brancas, muito altas, fugiam sobre os cerros como bandos de grous. Uma luz
branda, como o ocre desbotado dos velhos palácios, envolvia a terra. Mas o sol
lá ia, ainda magnífico, arrastando uma dalmática de soberbo e velho oiro.”
Do livro de Aquilino Ribeiro, A Via Sinuosa, Lisboa, Bertrand, 1960, pp. 215-216.
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