“Sócrates – Dizem,
caro amigo, que os primeiros oráculos no templo de Zeus, em Dodona, foram
feitos por um carvalho! É evidente que os homens daquele tempo não eram
tão sábios como os da nossa geração e, como eram ingénuos, o que um carvalho ou
um rochedo dissessem tornava-se muito importante conquanto lhes parecesse
verídico! Mas para ti talvez interesse saber quem disse determinada coisa e de
que terra é natural, pois não te basta verificar se essa coisa é verdadeira ou
falsa!” (Platão, Fedro, 275 c, trad. Pinharanda Gomes, Lisboa,
Guimarães, 1986)
Uma nota que me tem
despertado alguma reflexão, dizendo respeito às filosofias nacionais. A
filosofia pretende-se também universal ecoando a afirmação de Aristóteles na
Metafísica: “Só há ciência do universal (katholou).” Pois no contexto do
Estagirita a ciência foi enunciada num âmbito mais abrangente abarcando a
dimensão filosófica. Ora, mesmo que a filosofia tenha raízes na tradição
ocidental greco-europeia, ela universalizou-se acrescendo ao chamado global.
Quer na vertente anglo-saxónica, com a língua inglesa (estendendo-se aos EUA),
quer na dita europeia, "continental" (designação atribuída pelos
filósofos analíticos), curiosamente com a consolidação e expansão da língua
inglesa para ambas. Pois muitos dos filósofos na Europa recorrem frequentemente
ao inglês para alargarem o espectro do público e leitores, ou, como se diz
hoje, para adquirirem mais ‘visibilidade’.
É que esta questão
das línguas também tem que se lhe diga, embora eu não tenha competência para
analisá-la. Mas a título pontual leiamos um interessante passo de Fernando
Belo: “[…] a língua inglesa, que hoje presta excelentes serviços de língua
internacional nas trocas comerciais, tecnologias e turismos, justamente por,
apesar da sua origem saxónica, ser uma língua de muito pobre morfologia; mas
também é essa característica que parece justificar a tendência empirista e
pragmática dos textos anglófonos, a dificuldade dum intelectual inglês que uma
vez me confessou não poder pensar sem o recurso aos latinismos da sua língua”
(1).
Curiosamente, apesar
de se supor que a filosofia é universalizante, permanece todavia qualquer coisa
ao nível das línguas marcando-se pelo interesse ou pretensão em afirmar a
filosofia segundo esta ou aquela língua. Com efeito, a filosofia tida
geralmente como a mais divulgada e representativa, por assim dizer, move-se em
autores alemães, franceses, ingleses, poderíamos continuar pelos
italianos, etc., passando depois por muitas outras nações e línguas incluindo
Portugal, Brasil, etc. Mas a filosofia vai mesmo desde há umas boas décadas até
aos EUA. Pode dizer-se mais do que nunca que ela é universalizante e
globalizou-se. Temos até um Slavoj Zizek, esloveno, que praticamente só fala
inglês, Pop Star, Superstar da cultura com uma projecção mediática nunca
vista até hoje, de Tóquio a Nova York. Pode dizer-se que move massas à escala
da teoria e da crítica da cultura; veja-se o sucesso dos seus vídeos no Youtube.
Mas voltemos ao
universalizante. É que, a bem dizer, persiste a vontade de cada nação,
principalmente - e curiosamente - as mais relevantes no panorama mundial,
digamos assim, em reclamar para si, desta ou daquela maneira a preponderância
das suas mensagens, neste caso filosóficas. Quer dizer, a vontade de fazer-se
representar, a vontade de representação da sua cultura em sentido lato,
incluindo a dimensão filosófica. Isto com todas as polémicas e controvérsias
que poderão suscitar hoje as formas de “fazer passar a mensagem”. Pois saber
actualmente quem joga ou, pelo contrário, é jogado, nisto de fazer passar a
mensagem, ou quando ambas as instâncias parecem confundir-se de maneira ainda
por pensar, constitui um tema que já por si faria correr muita tinta. Por outro
lado, é curioso que o inglês é o veículo mais facilitador, como acima tentámos
exemplificar com uma passagem de Fernando Belo. Seja-se francês (Alain Badiou,
p.ex., vj. no Youtube o EGS - European Graduate School, fundado na
Suíça), espanhol, italiano (p.ex. Giorgio Agamben recorre por vezes também ao
inglês, no EGS), alemão (com excepção de Peter Sloterdijk e alguns outros que,
ao que creio, não prescindem da sua língua natal), etc. Mesmo hoje, em
Portugal, opta-se pelo inglês em certos Colóquios, Congressos e outros eventos.
Mas retomando a
questão central deste texto. Ora, não é curioso como o nacional se insinua por
vezes no internacional? Por exemplo, Heidegger reclamava um eixo fundamental
linguístico entre a língua alemã e a grega antiga. Sabendo nós que,
automaticamente, partindo desta tese, se estabeleceria a ponte entre a origem,
o chamado berço do pensamento filosófico europeu-ocidental (Grécia) e a
filosofia alemã, quer dizer, entre a "filosofia grega" e a
"filosofia alemã". Não obstante admirar a obra de Heidegger,
pergunto-me: isto não é nacionalismo filosófico puro dissimulando-se no/com o
Universal e no/com o Internacional (neste caso Alemanha e Grécia)? Para não
falar no seu fito, segundo consta – fase passageira, é certo -, de se tornar o
teórico ou um dos grandes teóricos e ideólogos, precisamente filosóficos do
Nacional Socialismo do III Reich de Hitler com o seu Sein und Zeit e o Dasein (2).
E a filosofia da Grécia antiga é universal, internacional ou nacional? Slavoj
Zizek, goste-se ou não, é esloveno. Ele tem uma projecção global (universal?)
nos moldes dos nossos dias, sejam ou não os melhores, garantam ou não o devido
peso. Há filosofia eslovena? Há mais de duas décadas Zizek candidatou-se à
presidência da Eslovénia (1990), sem sucesso. Ele quereria servir a sua nação,
o seu país, a sua pátria, ou, com isso, mais ainda a promoção da sua obra
ganharia a força pretendida? O seu gesto pôde muito bem ser meritório e digno.
Mas que megalomania insuspeitada ou nascente poderá por vezes estar subjacente
a um filósofo seja ele produtor de uma grande obra filosófica, seja ele ou não
um grande pensador? Que ideias estão por vezes por detrás? O exemplo que se deu
acima de Heidegger poderá ilustrar isso. Todavia, não esqueçamos que se
faz aqui um levantamento de questões. Com efeito, Heidegger e a sua obra, nem
pouco mais ou menos se limitam àquele breve mas grave episódio.
Se os “grandes”
(autores e/ou nações) supostamente universais se reclamam lá no fundo
nacionais, sem que por vezes nos demos bem conta ou peso disso, por que razão
os pré-supostos “pequenos” não terão a legitimidade de se atribuírem a seu modo
o nacional? E «o nacional é bom», como dizia um antigo anúncio publicitário.
Mais, nestas questões quem define quem é grande e quem é pequeno, quem é
universal e quem não o é?
Retomando de um
outro modo a questão controversa das filosofias nacionais, afinal, mais
universais, e vice-versa, do que é comum pensar-se, como vamos tentando mostrar
neste texto. Saber o que é uma filosofia nacional, comporta, já de si, indagar
das condições de possibilidade a questionar o que são filosofias nacionais. E
isso vale para qualquer nação, pátria, como alguns sublinham, para qualquer
língua que pensa. E não é um facto que permanentemente certas vertentes e
tonalidades filosóficas nacionais se dissimulam sob a aparência do universal,
seja qual for a nacionalidade? Por outro lado, mostrou-se acima como por vezes
algo tido como pensamento de teor não nacional e não nacionalista,
pretensamente universal, poderá trazer, ou pretender trazer consigo indícios
linguísticos nacionais e nacionalistas. Duplo movimento complexo. Eis o que
importa também pensar nestes contextos. O que importa reflectir sobre estes
movimentos de pensamento, sejam propósitos dignos ou não.
A filosofia dita
portuguesa não tem qualquer prioridade sobre a perspectivação de outra
filosofia hipoteticamente nacional. Nem, pelo contrário, qualquer outra sobre
ela. Quer dizer, mais uma vez, importa a questão enquanto tal. Interrogação,
questão da questão, abrindo, por si mesma, espaço e tempo de pensamento.
José Marinho no seu
texto “Filosofia Portuguesa e Universalidade da Filosofia” na linha de Álvaro
Ribeiro em O Problema da Filosofia Portuguesa ilustra muito bem a
problemática implícita das filosofias nacionais, focando a da filosofia
portuguesa e a universalidade da filosofia escrevendo o seguinte exemplo: “Que
o haver laranjas de Setúbal, assim como nos permite e nos autoriza chamar-lhes
laranjas portuguesas do mesmo passo aos deliciosos frutos e seu conceito não
retira à forma única e universal sabor ou sentido” (José Marinho, Estudos
Sobre o Pensamento Português Contemporâneo, Biblioteca Nacional, p.10).
Curiosamente há três instâncias: "laranjas de Setúbal",
"laranjas portuguesas" e as laranjas, cujo sabor e sentido é
universal. Antes, na p.9 pode ler-se: “Alguns dos homens mais inteligentes do
País colocam-nos na urgência de examinar a questão.” De examinar, de questionar
a questão. Mas também questionar a potência da indignação pelo facto de essa
mesma questão ser impossibilitada, a priori, ou de considerar-se que não
vale a pena, por pressupostos estabelecidos, dados e adquiridos, ou por se
supor à partida uma questão menor. A par disto, qual a viabilidade de pensar “o
que é isso, da filosofia”? Quer dizer, “ o que é isso, da - a que se chama, que
dá pelo nome de - ‘filosofia’? Ou por outra: o que é isso, aquilo (o que) a que
se dá o nome de 'filosofia'? Pergunta fundamental, indagando
sobre a própria pergunta sobre o nome ou palavra ‘filosofia’. “Que é isso, da
filosofia?” De outro modo, esta questão talvez abra caminho à reformulação da
questão de “o que é”, reformulando esta segunda questão sobre a primeira: “o
que é (isso, da - de a) filosofia?”. E: “o que é isso,
do ser?”. Para Aristóteles é a pergunta fundamental da filosofia a par do que é
a substância (Metafísica, 1028 b).
É preciso também
desmistificar a palavra "filosofia". E de alguma maneira
desmitificá-la. Por outro lado, a Filosofia traz o Logos sobre o Muthos.
No entanto, quem nos assegura que este não se insurje naquele, só por os
confundirmos de tanto os distinguirmos? Poderemos ver então outra reformulação
de como Muthos e Logos podem encontrar um novo nexo ou um novo diálogo. Não é isto
que nos podem trazer felizmente certas leituras e vertentes constitutivas da
chamada Filosofia Portuguesa? Não é ela por alguns vista como tendendo
exclusivamente para o Mito?
Mas por vezes os
filósofos tendem a personificar a Filosofia sem darem por isso. Tão-pouco ela é
uma entidade. Pois a entificação da Filosofia poderá traduzir um complexo de
superioridade da mesma.
Quando Heidegger
pergunta pelo sentido do ser no início de Ser e Tempo, essa pergunta não
se traduzirá na potência da pergunta na sua multiplicidade de perguntas
possíveis sobre si mesma e sobre o ser como sentido?
Voltando à questão
filosofias nacionais/filosofias internacionais. Esta questão não se
constituirá, portanto, no questionamento legítimo sobre, precisamente, o
questionar acerca da possibilidade de eventuais ou virtuais elementos
nacionais, legítimos ou não e estruturais também, dos mais variados, em
qualquer filosofia? Foi o que se tentou mostrar neste breve texto. Pode parecer
redundante, repetitiva esta série de questões. Mas questionar implica também um
recuar reforçado, instalando, correlativamente, uma força de avanço, de balanço
que constitui o buscar, o pesquisar enquanto potência de repetição, abrindo-se
como futuro. Em nosso entender o levantamento destas questões é pois
pertinente.
Luís de Barreiros Tavares
*Primeira parte de
um texto. Ver segunda parte:
2 comentários:
Parabéns pela reflexão. Abraço
Obrigado. Abraço
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