1. Acabámos de ler mais um livro que nos chega do Reino Unido.
O seu título é: «Compassionate
conservatism. What it is. Why we need it» — Conservadorismo compassivo (ou «solidário», como outros preferem
traduzir). O que é. Porque precisamos
dele. Da autoria de JESSE NORMAN e JANAN GANESH e publicado pela Policy
Exchange, Londres, 2 006.
2. Os autores
pretendem apresentar uma forma de «conservadorismo» que não se identifica
estritamente com o Conservadorismo (com maiúscula) do Partido Conservador
Britânico, ou Tory, mas que é comum a
quaisquer «conservadores» que possam, em princípio, pertencer a quaisquer
partidos políticos, ou a nenhum.
A sua básica teoria do Estado deriva largamente de THOMAS
HOBBES; não ignora JOHN LOCKE; e, não pertencendo, nem à tradição paternalista,
nem à tradição individualista, do conservadorismo, está mais próxima de uma
outra tradição: a distinta e sempre esquecida tradição «Old Whig», que tem as suas raízes em ADAM SMITH e EDMUND BURKE e o
seu moderno florescimento em MICHAEL OAKESHOTT e FRIEDRICH HAYEK.
3. O livro é um
libelo contra o «estatismo», quer o
actual britânico, quer o de quaisquer outros países. Para isso, depois de
firmar os seus fundamentos na teoria da legitimidade do Estado de HOBBES,
recorre à consagrada distinção de OAKE-SHOTT entre uma «civil association» e uma «enterprise
association».
Como explica JOHN GRAY, no seu livro intitulado Liberalisms: Essays in Political Philosophy, Routledge, London
& New York, 1 989, 1 990, 1 991, para a concepção de sociedade do
conservador liberal britânico MICHAEL OAKESHOTT, a civil association é uma associação entre pessoas que, não tendo
quaisquer fins ou propósitos em comum, não obstante coexistem em paz sob a rule of law, cuja função não é impor
quaisquer particulares deveres ou objectivos aos homens, mas sobretudo
facilitar a sua lide uns com os outros e assegurar as condições em que as
pessoas podem entre si contratar em actividades mutuamente escolhidas,
facilitando aos indivíduos a prossecução dos seus próprios fins, não tendo por
isso o law nenhum propósito em si
próprio, mas sendo formado apenas por regras gerais não-instrumentais e
independentes de fins (purpose-independent
general rules). Já a enterprise
association é uma concepção que, apesar de coeva da anterior e que sempre a
combateu, está na base do excessivo intervencionismo estatal socialista ou
social-democrata contemporâneo e para a qual a sociedade e o Estado são
entendidos como uma «organização» para a
obtenção de um fim, ou de uma hierarquia de fins, e que tem sido dominante
nas doutrinas colectivistas e positivistas do nosso tempo, desde o comunismo
soviético (ou chinês), ao nacional-socialismo, passando pelo New Deal, a economia mista, o
corporativismo e o capitalismo do Welfare,
sendo uma concepção radicalmente inimiga da realização da individualidade humana.
4. O livro de que
nos ocupamos agora apresenta, assim, a partir da concepção da civil association, uma concepção de sociedade, a que chama connected society: uma sociedade interdependente ou religada (ou «conexa», como outros preferem traduzir).
A ideia de connected
society pretende preencher o que, tanto em HOBBES, como em OAKESHOTT, fora
omisso, àquem de uma sua especificação mínima: a ideia de que, o que motiva os
seres humanos viventes, amantes e mortais, que se associam em grupos ou
instituições de qualquer imaginável espécie, é a afectividade humana. Não apenas a obediência a regras, ou a prossecução de quaisquer objectivos colectivos, mas um sentido de cultura, de identidade e
de pertença. É o sentimento de pertença,
de estar dentro de um círculo e de fazer parte de um grupo. Assim, há uma nova
espécie de associação, mais baseada na afectividade do que nos procedimentos
legais ou nos propósitos deliberados. A associação «connected» recorre à palavra grega philia, de cujos vários significados se destacam os de amizade, laço, afeição e cuidado. Faz-se assim luz sobre o que
HOBBES deixara de fora: um lugar para os seres humanos e para o que os ajuda a
florescer; um lugar, entre o indivíduo e o Estado, para todas as instituições e
corpos intermédios que nos re-ligam em conjunto e dão preenchimento às nossas
vidas; uma presunção contraba-lanceada em favor do indivíduo; e o
reconhecimento de que o que motiva os seres humanos não tem que ser apenas uma
questão de «pau e cenoura», combinada com regras
ou com a prossecução de um qualquer objectivo
colectivo, mas de cultura, de identidade e de pertença. Assim, a sociedade
é organizada horizontalmente, não verticalmente por relação com o Estado,
de modo a colocar essas instituições intermédias no seu coração.
5. Esta
orientação filosófico-política comporta
três compreensões: a de que o homem é um animal social; as pessoas não são
apenas estéreis agentes económicos, mas seres viventes e respirantes que
encontram a sua auto-expressão e identidade em relação com outros. Um ponto de
vista político que ignora a dignidade humana, ou a energia, ou a criatividade,
sob o nome de um estéril economicismo, empobrece-se a esse grau. Os
conservadores compassivos estarão mais próximos de HAYEK quando ele disse que a
totalidade da natureza e do carácter dos indivíduos é determinada pela sua
existência em sociedade. Em segundo lugar, assim sendo, as pessoas criam
instituições, de extraordinária escala e diversidade, e essas mesmas
instituições ajudam a moldar as pessoas que lhes pertencem e a sociedade mais
amplamente. Por fim, algumas dessas instituições colocam-se, elas mesmas, entre
o indivíduo e o Estado, actuando, entre outras coisas, como condutoras,
orientadoras e garantes da estabilidade.
Numa sociedade, os indivíduos são socii, em latim, que colectivamente pertencem e se reconhecem uns
aos outros como «pertencentes», o que
cria um grau de mútuo respeito e de obrigação entre eles. Estes associados são
iguais e livres e o laço que cada um deve ao outro deriva o seu valor de ser
livremente concedido.
Uma sociedade é assim, neste básico sentido, uma associação
liberta de classes, hierarquia ou qualquer outra estrutura herdada, ou
instituição, que possa constranger a liberdade dos indivíduos. E pela mesma
razão, uma sociedade é e deve ser liberta de avassaladoras concentrações de
poder. O Poder deve ser difuso; deve ser partilhado e contrabalanceado para que
uma sociedade possa existir de todo. A rule
of law é tanto um pré-requisito, como uma específica criação de uma tal
partilha de poder: instituições como a propriedade privada, ou o habeas corpus, ou a independência do
judiciário, naturalmente despontam para proteger liberdades e interesses
existentes e para permitir que se desenvolvam novos. Estas instituições servem
então, por sua vez, como protectoras da liberdade.
Numa sociedade interdependente, o Estado soberano é uma
instituição entre outras, apesar de ser uma instituição privilegiada. Como
cidadãos, devemos-lhe confiança moral, como HOBBES acreditava; mas como
associados também devemos confiança uns aos outros e às muitas instituições que
nos definem. O Estado é apenas titulado com o poder de coagir os indivíduos de
acordo com o law contra a sua
vontade. Mas precisamente por essa razão, ele está sob continuadas obrigações.
Primeiro, a de restringir-se às suas próprias acções, reconhecendo os seus
limites intrínsecos e balanceando as sua próprias acções com os arranjos e as
organizações existentes; em segundo lugar, reforçando e apoiando essas mesmas
instituições que inibem o seu poder e o forçam ao diálogo.
A centralidade das
instituições está em que, em vez da oposição entre o indivíduo e o Estado,
que se encontra em muita teoria política, temos uma relação tripartida, entre
os indivíduos, as instituições e o Estado, que é o aspecto que transforma a
sociedade num florescente organismo.
6. Finalmente — e
isto é apenas uma pálida imagem da riqueza e do enorme potencial crítico de
todo o livro —, a referência a três princípios: numa sociedade interdependente,
a ênfase está na autonomia e na liberdade individuais, na diversidade e no
pluralismo, nas instituições que ligam as pessoas em conjunto e na atenção às
tradições e cultura comuns. Para os conservadores compassivos, reduzir o poder
do Estado é não só desejável, em princípio, como a pré-condição de uma melhor sociedade. O primeiro princípio é,
pois, o da liberdade. Ele reconhece
que muitas intervenções do Estado são necessariamente coercivas e que outras
possam ser desejáveis. Mas insiste em que os indivíduos, como cidadãos, devem
usufruir de uma presunção positiva de liberdade e contra as interferências do
Estado nas suas vidas. A contrapartida desta liberdade é a de que os indivíduos
devem assumir um maior grau de responsabilidade pessoal pelas suas vidas.
Afinal de contas, se o Estado é o meio que usamos para pagar pela nossa saúde,
bem-estar e educação, então só poderemos esperar que ele tenha interesse em
como nos comportamos.
O segundo princípio é o da descentralização (e, embora os autores não o refiram, poder-se-ia
falar, também e mais amplamente, no «princípio
da subsidia-riedade»). Ele traz o
poder político e a responsabilidade de volta para os cidadãos individuais, sublinhando
que as decisões políticas devam ser tomadas, na medida do possível, o mais
próximo das pessoas que elas afectam. Algumas decisões têm de ser tomadas a
nível nacional, ou internacional; mas muitas decisões podem e devem ser
trazidas para o nível local.
O terceiro princípio é o de prestar contas. Ele permite aos cidadãos exercer a sua vontade
política efectivamente, insistindo em que os que estão no poder político devam
prestar claramente, à cidadania, contas pelas suas acções.
Tudo isto sublinha a amplitude em que o conservadorismo
compassivo encara a limitação do poder do Estado e preserva e estende a nossa
democracia. Contudo, a democracia não é o único valor político. Ela pressupõe a
rule of law e, assim, que os nossos
arranjos constitucionais estejam funcionando bem.
VIRGÍLIO CARVALHO (Dr.).
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