De entre a multiplicidade das
dimensões da «Pessoa Humana Real» - que a definem como uma «complexidade integrada», pois que a pessoa não é uma mera
simplicidade, mas uma «unitas multiplex»,
uma «unidade ou ordem plural» - é
possível identificar, pelo menos e de um modo fundamental, as seguintes linhas
de força:
1. Uma dimensão estrutural «a
priori» ou constitutivo-formal que é uma sua «Natureza Humana Comum e
Universal» - ou melhor: uma mesma «constituição ontológico-fun-damental», na
terminologia de MARTIN HEIDEGGER, que interpreta o «ser» do homem, na verdade,
menos como «quididade» ou «substância», e mais como jogo, ordem relacional
interna, abertura, plasticidade, mobilidade interna, mutabilidade, temporalidade
e historici-dade, projectividade, possibilidade «transcendens», etc. -, ou um «fundamento humano comum», expressão de «uma mesma e universal realidade humana»,
aberta, dinâmica e plástica, móvel e mutável, dotada de historicidade, comum a
todos os outros seres humanos, como quadro-geral de determinações e de
possibilidades que a «constituem» na
sua «universalidade humana» e que é a chamada «identidade do diferente»: enfim,
todos os «existenciais» e «modos-de-ser» analisados pelo mesmo HEIDEGGER em «Ser e Tempo», 1927.
É esta dimensão que funda o valor
da «Igualdade» (ontologicamente
configurada) entre todas as pessoas e, entre outras coisas, enfim, a «Democracia», como universalidade.
2. Uma horizontal dimensão
material (afectiva) «relacional externa», ou «social» (possibilitada pela sua
vocação de «sociabilidade», que, embora não exclusiva, FREUD disse ser a sua
«aspiração à comunidade»): na verdade, boa parte da sua «identidade» é de origem e constituição «social», desde a formação precoce da «personalidade» no triângulo
edipiano da interactiva «situação parental» (parenthood) da família; até, depois, na relação e interacção com a
escola, o grupo juvenil, os vários contextos sociais, a civilização e a cultura
envolventes, etc. Por outro lado, a pessoa não deixa de formar, em alguma
medida, «uma sociedade consigo própria», uma «ordem relacional interna», devido
à pluralidade de subjectividades e de fidelidades que, socialmente, os vários
contextos sociais externos nela vão constituindo.
Só que, esta dimensão – que não
tem nada de um exclusivo e total necessitarismo substancialista e essencialista
«a priori», como o defende o personalismo substantivista-social dogmático e
toda a espécie de «socialismos», que só falam da «pessoa social» e de uma dogmática
e exclusivamente única essência ou natureza «social» da pessoa… - não define à
pessoa toda a sua «essência» ou «natureza» (que é, não se esqueça, antes do
mais, «Ek-sistência»), não
esgota toda a sua interioridade, subjectividade e espiritualidade, pelo que,
existindo também na pessoa uma indesmentível e parcial dimensão de «insociabilidade» (a «sociabilidade insociável» de que falava KANT), pode hoje, tranquilamente,
dizer-se que «nem todo o humano é social». Há uma dimensão da
pessoa e da liberdade que será sempre pré-, extra-, ou méta-social. E daqui a
conclusão moderna de que o homem não é só «um animal gregário»: «zoon politikon», lhe chamou
ARISTÓTELES.
3. E tem ainda a pessoa uma sua
vertical «individualidade própria real» (individualidade natural),
possibilitada pelo princípio ôntico-ontológico forte da «individuação», e que
se dá e se exprime imediatamente (primeiro, na comum experiência humana da
Existência consciente) na unidade ôntico-ontológica do «Eu» (verdadeiro ponto
de sutura entre o ontológico e o psicológico), como diferença, como mónada
solitária, como substância individual e individuada e como «Existente»:
LÉVINAS. Ou seja, a sua estrema e absoluta «singularidade
ética individual» e «idiossincrática
própria», particular, concreta, diferenciada, única e irrepetível, que a
distingue individuadamente de todos os outros seres humanos, através da «Ipseidade»: da «Selbstheit», do «Selbstsein»,
ou «ser-si-próprio» da filosofia
existencial alemã.
E, para uma concepção individualista,
realista e crítica da pessoa humana, como a nossa, mesmo que tenhamos que
reconhecer que «…o homem real é a
unidade dialéctica de duas relativas autonomias, a autonomia do seu “eu social” (…) e de um “eu pessoal” – a unidade dialéctica, se
quisermos, da objectividade e da subjectividade humanas» (A. CASTANHEIRA NEVES)
– todavia nós afirmamos o «relativo
primado do eu pessoal sobre o eu social». Não uma simetria ou perfeita
reciprocidade entre aqueles referidos dois eus (ou as duas dimensões do «Self»), mas o «relativo primado ou a preeminência última do eu pessoal sobre o eu social», a
preeminência da «Selbstheit», do «Selbstsein», ou do «ser-si-próprio». Na aceitação da parcial
dimensão «social» do «Self» divergimos decisivamente do
individualismo estrito e absoluto, do «falso
individualismo» solipsista, radicalmente atomista, fragmentarizante e
moderno-cartesiano de que falava HAYEK, o qual desemboca, paradoxalmente, tanto
no libertarismo ou anarquismo radicais, como no socialismo e colectivismo
totalitários. Na afirmação da relativa prioridade ôntico-ontológica ou
preeminência última do «eu pessoal»,
convergimos com o «verdadeiro
individualismo» deste último autor referido e de POPPER e com o relativo «privilégio ontológico» que também HEIDEGGER
disse ter sempre o ser humano (o «ser-aí»,
o «Da-sein») sobre o «mundo», sem
contudo negarmos este e a sua específica realidade aberta, nem as decisivas
autonomia e objectividade sistémicas relativas da sociedade e da civilização.
VIRGÍLIO CARVALHO (Dr.).
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