1. Um holismo aberto, relativo e
fragmentário.
A «Comunidade» (Gemeinshaft) é o
conceito total, normativo-transcendental e prático (e o pressuposto) que
possibilita e condiciona todo o discurso normativo:«Discurso Legitimador», como
lhe chamou J. BAPTISTA MACHADO.
Seja como «Comunidade Ideal de
Argumentação» (KARL-OTTO ÄPEL); seja como «Comunidade de Comunicação Ilimitada»
(JÜRGEN HABERMAS); seja como a pré-condição a priori de uma «situação ideal de
fala» que vai pressuposta na «posição original» do contratualismo de um JOHN
RAWLS. Por isso, ela é ainda um objectivo último a posteriori no horizonte
teleológico de todo esse discurso.
Isto também porque a «Comunidade»
é ainda um dado radical da condição humana, já que o «ser-com-outros-no-mundo»,
ou o «estar em comunidade» é, segundo MARTIN HEIDEGGER, a condição ontológica
primeira do «ser-aí», i. é, do homem, como «ser-no-mundo», sendo o «ser-só» um
modo deficiente do «ser-com».
Mas, para isso, ela tem de
assentar num holismo aberto, relativo, fragmentário, poroso e incompleto — i.
é, na concepção da «Comunidade» como uma totalidade aberta e relativamente
indeterminada, inacabada, imperfeita e inconclusa para cada um.
Este (nosso) holismo
contrapõe-se: quer ao holismo fechado e absoluto da perspectiva totalitária,
cujo círculo de compreensibilidade é totalmente fechado e fixo em todas as
direcções (limites intransponíveis da sociedade fechada e tribal, ou só
nacional); quer à perspectiva exclusivamente moderna do individualismo e atomismo
radicais (do indivíduo abstracto e sem personalidade) e do racionalismo
iluminista moderno, em que o indivíduo é abstraído e isolado de todo e qualquer
contexto social, espacial ou temporal (um mero «dígito» ou «ponto geométrico»),
tal como uma mónada absoluta e incomunicável, sendo o espaço e o tempo que o
rodeiam radicalmente abertos e móveis em todas as direcções, e ad infinitum.
No holismo aberto e relativo de
que falamos — que é, pois, o de uma «Comunidade Aberta» — a posição de cada
sujeito é a da pessoa humana individual que, enquanto «ser-no-mundo» (HEIDEGGER), está sempre, de
algum modo, radicada e inserida num ou noutro contexto social, situação ou «mundo-da-vida»
(HUSSERL) comunitário, mas este enquanto mundo aberto e rede ou ordem intersubjectiva
plural, flexível, móvel e aberta de relações, nas quais se pode entrar e das
quais se pode sair livremente. Porque é sempre um ser-aí (Dasein: HEIDEGGER) a
pessoa está sempre também, de algum modo, contextualizada num dado espaço e
numa certa ordem (num certo território, numa certa comunidade, numa certa
cultura, numa certa civilização…) e num dado tempo ou época de vida; a sua Existência
é, portanto, finita, no espaço e no tempo. Mas o seu Futuro é o da compreensão relativamente
indeterminada de um horizonte (espacial e temporal) aberto, de resto, móvel,
intercambiável, variamente configurável e que se alarga contínua e
incessantemente, enquanto transfinitude e acervo de concretas possibilidades
humanas (poder-ser).
Corresponde este holismo à compreensão
de um nosso personalismo liberal, crítico e aberto, que se contrapõe: quer ao
holismo absoluto e fechado primeiramente referido, no qual apenas conta a totalidade
homogénea social colectivista, como única e absoluta «realidade» e que, na
versão do materialismo social marxista, só conta com o social, para o qual o social
e o colectivo são a única realidade, como totalidade fechada e
imanentìsticamente entendida; quer ao individualismo radical (no limite, anarquista),
que apenas afirma o indivíduo em si, com tendência à negação de toda e qualquer
contextualização social, de toda e qualquer «Ordem» integrante e de todo o enraizamento.
E corresponde, hoje, a uma visão GLOBAL
do conceito de «Comunidade», como Comunidade Mundial e/ou Global — e, por isso,
cosmomopolita e trans-nacional (ANTHONY GIDDENS.
A este nível — transcendental — o
conceito de «Comunidade» é, pois, sempre o de uma «Comunidade Aberta».
2. Os três níveis
empírico-sociológicos estruturais-fundamentais das comunidades modernas.
Até aqui, falámos, pois, da «Comunidade»
a um nível só conceptual e/ou ideal.
Mas, empírico-sociologicamente, o
conceito de Comunidade (Gemeinschaft) combina-se, hoje, com o conceito moderno
de Sociedade (Gesellshaft), dando lugar a três níveis empírico- -sociológicos estruturais fundamentais:
— Um primeiro e concreto nível é
o nível micro-social e contextual concreto das múltiplas
e variadas Comunidades de Vida e de Saber» (BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS), ou os
também chamados «mundos-da-vida», constituído pelos pequenos grupos e
agregações, colectividades, organizações espontâneas e associações voluntárias
da mais diversa índole, em que as pessoas são companheiros conhecidos uns dos
outros, têm uma relação de «pertença» e aprenderam, ao longo do tempo, a
servir-se uns aos outros, prosseguindo aspirações comuns: são, por exemplo, a família
(como comunidade de afectos, de educação e de cultura); sob este ângulo e
internamente, a empresa (como comunidade de trabalho); de algum modo, a escola
(como comunidade educativa); etc. Neste nível predominam os valores da
cooperação e da colaboração voluntária, do altruísmo e do mutualismo, da
solidariedade, do companheirismo, da partilha, bem como, de resto, toda a
espécie de atitudes e emoções mais arcaicas e antigas na evolução antropológica
e mais primitivas e instintuais. Predomina, também, aqui, o que se poderá
chamar com propriedade, uma democracia participativa básica: «participação» nos
pequenos «todos» (wholes) que são essas «comunidades».
— Um segundo e não menos concreto
nível da realidade social é o nível intermédio da sociedade (=gesellshaft), ou
onde o conceito moderno de sociedade melhor se aplica [e, por isso, onde melhor
se aplica o conceito de sociedade aberta (e abstracta) de um KARL POPPER] — e
que consiste em todo o vasto campo ou espaço horizontal alargado das relações
sociais de estrita reciprocidade ou comutatividade contratual entre sujeitos
individuais livres e iguais e, por isso, também e sobretudo à realidade
económico-social, plural e dinâmica do Mercado e das trocas livres — da chamada
catalaxia, ou jogo cataláctico (LUDWIG EDLER von MISES e FRIEDRICH HAYEK) — e
que é o reino privilegiado de uma «Ordem Espontânea (Kosmos), da justiça
comutativa e das relações puramente económicas, bem como, também e ainda, da
chamada sociedade civil liberal (JOHN GRAY). É da amplitude e do vigor deste
nível que depende a afirmação, nas nossas democracias, de uma dimensão liberal,
as quais, por isso mesmo, se denominam como democracias liberais.
Neste nível os sujeitos estão empenhados, de
um modo pacífico, embora competitivamente,
em prosseguir milhares de milhões de diferentes finalidades da sua própria
escolha, em colaboração indirecta com milhares de milhões de outros sujeitos,
que aqueles primeiros provavelmente nunca conhecerão. É o nível estrutural mais aberto, alargado, extenso, complexo e
diferenciado e onde encontramos, já, os valores individualistas e modernos da
autonomia e da independência individual, da liberdade concorrencial, da
competitividade, do risco ponderado, do cálculo racional de custos/benefícios,
do pragmatismo, da eficácia e da eficiência, da perícia e da técnica, do
saber-fazer (know-how) e da optimização de resultados, da produtividade, etc.
Nele predomina uma liberdade relacional positiva, como uma liberdade liberal e não-participativa,
concretizável numa liberdade de acção (agere) e numa liberdade de realização ou de fazer coisas (facere). Nele se insere,
por exemplo, a empresa quando considerada de um ponto de vista externo.
— Finalmente, um terceiro e mais
abstracto nível — por onde se pode fazer a síntese dialéctica entre uma «Real»
Comunidade de Comunicação e uma «Ideal» Comunidade de Comunicação — é o da
introceptiva convergência e participação supra-estrutural na Comunidade Global
(quer Nacional, quer Trans-Nacional), seja como Comunidade Humano-Social,
Cultural e Histórica Independente (Povo+Nação+Pátria), seja como Comunidade
Público-Política Aberta, Livre, Soberana e de Direito (Res-Publica+Estado),
onde se «participa» correspon-savelmente, num «NÓS» Político Aberto de
Integração «GLOBAL», que nos envolve, nos condiciona e nos compromete e onde se
procura o Bem Político (a Boa Vida Humana, o Viver Bem do homem como Pessoa),
de acordo com as categorias centrais clássicas de Práxis (agir), Fim e Valor
Ético e da virtude dianoética e ética da Phronésis=Prudentia, bem como a
determinação óptima da Forma Política (Bem Comum, Autoridade Legítima, Direito
e Povo) e onde prossegue ainda a «Conversação com a Humanidade» (RICHARD RORTY)
e se discute a «Política do Direito» (ANTÓNIO CASTANHEIRA NEVES) e,
verdadeiramente, a «Métapolítica» (HAYEK).
Para este nível, dadas as suas
abrangência e dimensão, é apropriada a Democracia Clássica Representativa, ou a
Demarquia Hayekiana, seja no modo de uma estrita democracia partidária, seja no
modo de uma, mais integral, realista e completa, constituição mista (elemento
democrático-represen-tativo+elemento aristocrático+elemento monárquico).
Nele se manifesta uma Consciência
Cultural e Normativa Comum, em que se inserem, tanto uma intersubjectiva e
socialmente partilhada Consciência Jurídica Geral (com três níveis de
determinação objectiva), como uma generalizada Opinião Pública Democrática,
incluindo uma Opinio Ivris, ou um também dito Ivris Consensus. Nele se exerce,
pois, uma fundamentalíssima Liberdade Democrática Participativa Global, pela
qual se pode fazer a ligação entre a Liberdade no Mundo e a Liberdade
Espiritual e que é o terreno privilegiado da Filosofia Jurídico-Política
(CASTANHEIRA NEVES) e da Métapolítica (HAYEK).
VIRGÍLIO CARVALHO (Dr.).
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