Trova I
Vós que não credes em santos, que vos não abismais com as palavras dos padres, nem tanto com as afirmações da Igreja, ficai cientes, junto deste fogo que arde sabe o diabo desde quando, e se incendiou desde lá da raiz da treva, que não é a história de D. Diogo Lopes que trago, homem temente, mas aquela da Dama Pé-de-Cabra, que viu o Mundo sem medo e lhe abraçou a religião.
Essa criadora criatura, se assim lhe posso chamar, não tem, a verdade é testemunha, olhos, são os nossos olhos que lhe emprestam os seus, e não tem a formosura que nenhum homem negaria que tem, assim como os seus seios que resgatam os corpos da insignificância vazia não são mais que desejo. O que tem a criatura, é voz, voz e boca com canto que comeu as suas belas mãos e os seus finos dedos, os ombros esguios e os cabelos soltos, e o que não pode disfarçar, das partes com voz de corpo, são os seus sonantes cascos (de onagro, jumento dos desertos que perfilam a Ásia), porque são os pés que suportam o vulto próprio no mundo.
Trova II
Não podia, a Dama Pé-de-Cabra, dormir, nem tanto acordar, todavia, existia na paisagem da noite e na paisagem da madrugada, escolhendo, por habitação, os montes selvagens, onde as manifestações mais bravias e os céus se misturam numa miríade de cores insólitas. E nem de esboçar o riso se capacitava, mas se esse o impulso sentido, abria o céu clareiras solares.
A Dama desceu dos Reis, pelo mesmo direito com que os deuses subiram do Tejo, e, já muito depois de votada nos assuntos secretos pela ousadia da magia de Eros, casou o homem mais abastado de toda a Espanha, esse tal de D. Diogo Lopes, adivinhando-lhe de que sonhos se movia e de que alma se debatia, afastando-o das manhas da cruz e da superstição.
Deste duque, gerou dois filhos, um mais apto ao Mundo e outra menos apta ao Mundo, que foi a que levou consigo no dia em que escapou dos símbolos e das palavras que sentia amordaçarem. Tinha por fé cristã a morte e a vida, como dois cães numa cave a apodrecerem enraivecidos e famintos.
Trova III
A superioridade espiritual é dotada de um corpo animal, que se mostrava, no contexto familiar, por uma podenga negra de reflexo encarnado no feitiço da luz. Diogo Lopes era dono, por sua vez, a um alão, e o dia chegou em que a Dama Pé-de-Cabra, pelos instintos do alão penetrada, retalhou pela podenga toda a corpulência da besta canina. O esposo encontrou no caso obra demoníaca, e cobrindo-se do escândalo da piedade dos santos, logo o elemento aéreo, justiça das coisas criadas, os separou, ela, que diziam do povo das fadas, com a filha no braço. O outro mancebo, corre que o baptizou mais tarde, por via de seu cântico em lugares ermos, cuja melodia fazia da alma das várias coisas uma alma de coisas várias, cuja canção em sabática orgia rompia os rochedos com rochedos, desenhava com os ramos e as raízes de árvores, árvores de ramos e raízes, escurecia o miasma com mil corpos de carvão retirados do fogo, ainda a ansiar, por gemido no cântico confundido, a Mãe Flama. Depois, as árvores de pedra e animalescas folhas e troncos e homens-mulheres em carne luminosa e imperial como uma coroa de serpentes enroscadas. Pois foi assim vivendo D. Inigo, filho a D. Diogo Lopes, incapaz de ser ferido ou derrotado pelas parcelas, vitorioso em todas as guerras de Leão.
Trova IV
Quanto a Ela... poderá ainda encontrar-se, não nas histórias, mas entre as águas sobre o céu e as águas abaixo do céu, no deserto de azul que apaga as pegadas dos anjos e os rostos dos homens.
André Consciência
* esta estória vem de Vinhais, e o primeiro a escrever sobre ela foi Conde D. Pedro - o "Quarto Livro de Linhagens" em 1340. Segue-se-lhe Alexandre Herculano - ver obra "Lendas e Narrativas".
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