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Embora abafado pela cortesia ou pela real
admiração pelo país ou pela modesta admissão de que se trate de ignorância
própria, chega-nos
de quando em quando o eco de um espanto pela falta de originalidade do que,
fora do Brasil, aparece como a representação ou o produto de suas possibilidades
culturais. O que podem supor os que têm do Brasil apenas a impressão que lhes
transmitem os escritores de mais geral fama, fora dos géneros a que poderemos
chamar líricos, ou os
conferencistas ou os professores universitários, é que estamos apenas
copiando Europa ou América, sem nenhuma espécie de originalidade e sobretudo sem aquele
centelhar de esperanças novas que tanto a Europa propriamente dita como o seu
prolongamento, ou
agravamento, que é a América do Norte desejariam ver surgir nalgum canto do
mundo e estariam como que preparadas por um conjunto de circunstâncias a tomar do
Brasil. O mais grave ainda, para sermos inteiramente francos, é que, em grande
parte das
vezes, a imitação lhes aparece,
além do mais, com os traços de uma involuntária
caricatura.
É evidente que tinha de ser esta a
consequência, dadas as bases em que assenta a chamada cultura brasileira e dado o
desconhecimento que é
justificável tenham os estrangeiros de certos pormenores ou demasiado subtis ou
demasiado ocultos do que se passa nos meios de alta cultura e que garantem ou
apontam, apesar de tudo, uma originalidade do Brasil. Tomada no conjunto, a cultura
do Brasil vive ou com saudades da Europa ou
tendo por meta a realização americana. Nada
distingue a ciência brasileira da ciência europeia, a não ser a sua menor
pujança; nada distingue a arte brasileira da arte europeia, a não ser a
sua menor originalidade; nada distingue
a filosofia brasileira da filosofia europeia, a não ser a sua quase
total inoperância. Como nada distingue as academias brasileiras das europeias, a
não ser que ainda são mais velhas; ou as universidades das suas
congéneres de além-Atlântico ou além-México, a não ser que têm menos tradição; ou, de um modo geral,
as escolas brasileiras das escolas europeias, a não ser que ainda são mais
restritivas de qualquer livre
e amplo desenvolvimento do espírito do homem.
Por todo o mundo vão as elites sem rumo e as
nossas fazem nisto parte
das elites de todo o mundo; nenhum esforço profundo, nenhuma séria e audaciosa reflexão faz que
deixemos de passar de extravagância a extravagância ou de moda a moda, sem que
sequer se tenha a consolação de verificarmos que fomos os criadores
do novo ópio; não há nem o início de um pensamento nosso, nosso
e portanto novo, e, porque novo, digno da real atenção do
universo; não há nem o início de uma política nossa, ligada
naturalmente a uma forma nossa
de economia, que viesse resolver aqueles problemas de economia mundial e de política mundial e de humanidade mundial, digamos
assim, que não podem resolver nem o totalitarismo da liberdade, à
maneira americana, nem o totalitarismo da planificação, à maneira
russa; e, mais grave do que tudo, não há nem o início de uma ciência nossa.
No entanto, basta que o observador, pondo de lado os livros das bibliotecas
eruditas, e os quadros dos museus ou exposições eruditas, e as reuniões dos homens eruditos, que
com tanta frequência se exportam ao estrangeiro, viaje pelo interior de Rio
Grande ou Minas ou atravesse os
sertões do Nordeste e se demore com alguma atenção no estudo daquela gente que um dia
alimentou o Brasil, ou lhe deu as primeiras bases daquele barroco que é
apenas um dos aspectos de um
maior barroco atlântico tão demorado em surgir, ou afirmou em Canudos, morrendo, o
seu direito à originalidade, basta o conhecimento embora ligeiro daquele Brasil que
se recusa a julgar seu destino, esperar no cais o último e
louco ditame de além-mar, para entender como está inteiramente errado o Brasil
que os estrangeiros conhecem e, por outro lado, para perceber como assenta em bases inteiramente brasileiras uma
literatura como a de Mário de Andrade ou uma arquitectura que, no
melhor, já vai unindo a
abstracção e o barroco.
Se esse povo se pudesse afirmar, viria primeiro a
derrocada de todas
as imitações filosóficas que as escolas teimam em impor ao jovem estudante
brasileiro; não teríamos mais aristotelismos de jeito alemão ou francês, de qualquer modo nitidamente europeus, aristotelismos
adaptados a uma política do poder, e não aristotelismos de fraternal convivência como foram os
da Península Ibérica, enquanto a Europa a não dominou também; porventura
teríamos aquela sonhada fusão, numa unidade mais vasta e aí
verdadeiramente perene, de aristotelismo e platonismo; mas,
pelo menos, não haveria mais kantismos e empirismos de importação,
tão culpados na criação de falsas aristocracias, e sobretudo
aquelas várias espécies de positivismo nas quais os homens se
esquecem de que é absurda toda a filosofia que não culmine numa
teologia; viria a derrocada de toda a política movida à maneira
inglesa ou francesa por cepticismos ou por interesses económicos e
desapareceriam todas as saudades que ainda existem de regimes que
têm por base a ideia de que não é o governante responsável perante
Deus; viria a derrocada de toda
a arte em que o artista nunca entendeu que ela é fundamentalmente uma liturgia
em que se fundem uma liturgia, digamos de adoração, e uma liturgia de criação do
Céu na Terra e em que, por conseguinte, não pode ser oficiante o
homem cujo pensamento ou cuja vida vagam na desordem: em que o
artista tem de ser puro, não porque cumpre um código de
preceitos, mas porque, no acto, é puro o seu espírito; viria a
derrocada de toda a ciência que o Amor não move, mas que pelo
contrário nos aparece no mundo
de hoje cada vez mais acelerada pelo ódio; como viria a derrocada de toda a religião
puramente formal que só pode ser vivificada pelo livre sopro daquele Espírito Santo
cujo culto, tenazmente, o povo
brasileiro conserva e defende.
Tudo isto que está imerso na liberdade gaúcha
ou na beleza dolorosa
e frágil das violadas de roça ou nas carrancas do S. Francisco ou nos folhetos
das feiras nordestinas; ou que já teve uma primeira e fragmentada expressão nos novos edifícios brasileiros,
nas Escolinhas
de Arte ou nos sábios do Instituto Oswaldo Cruz; tudo isto
poderá de súbito eclodir numa explosão de Primavera do mundo e, dando as mãos a movimentos novos das
terras portuguesas, trazer ao universo aquele novo tipo de existência que não
será marcado pela submissão à cidade ou pela caridade perante o
degradado irmão, mas pela possibilidade para cada indivíduo de ser
um criador no campo da Arte ou no campo da Ciência ou, no que é
talvez mais importante, no de
sua própria Vida.
Nada haverá, porém, sem que por deliberada
acção dos homens ou
pelo oculto império das forças propulsoras ou explicadoras da História, de que
jamais falam os historiadores oficiais, se tornem inteiramente diferentes as condições económicas,
pedagógicas e de convivência
política do homem brasileiro e sem que se acabe de vez com a ideia de um
Brasil puramente litoral que olha, meio desconfiado, meio temeroso e ao mesmo tempo
superior, para o Brasil
dos sertões; neste último ponto, tem de se considerar que o movimento dos
bandeirantes nada mais sofreu do que uma interrupção, devida provavelmente à pressão de um
estrangeiro ao qual mais
que tudo convinha a existência de um Brasil puramente marítimo. Como outrora, o
Brasil tem de voltar as costas ao mar, para que a ele torne um dia como vencedor; isto é,
como dominador de si próprio.
No que respeita à economia, a necessidade
fundamental é a de que todo o brasileiro
tenha acesso às fontes de riqueza e seja tratado essencialmente não como
produtor mas como consumidor; não creio
que ainda aqui se possam importar sistemas europeus e nos possamos contentar
ou com a propriedade estatal ou com as cooperativas: à primeira
se opõe o sentido de liberdade do brasileiro e ao segundo método o
considerar ele, com toda a razão, que há coisas que têm muito
mais importância do que o cuidar da própria subsistência; também
não tem sentido algum, perante a técnica moderna, defender a
pequena propriedade: o ideal seria a criação de autarquias económicas,
confiadas a homens de espírito bandeirante, que funcionassem,
perante o Estado, como empresas capitalistas, mas perante o consumidor como cooperativas.
Quanto a escolas, tudo o que há a dizer é que
todas elas estão completamente
erradas, senão quanto ao presente, pelo menos no que há a fazer pelo futuro; são
escolas de ensinar, quando o brasileiro requer escolas que sejam, como a Vida, de
aprender; são escolas de professores, quando deveriam ser escolas de alunos; são
escolas de
repetir, quando deveriam ser
escolas de criar, são escolas que se não importam para nada nem com a realidade nem com o
ideal brasileiro; são finalmente escolas que pesadamente existem,
quando o ideal a que deve tender uma escola é exactamente aquele a
que deve tender o Estado: o de ser. E só uma economia que
exista o menos possível, e só uma escola que exista o menos
possível, podem ser a base de uma convivência humana que seja fundada
sobre a fraternidade e não sobre a lei, sobre a liturgia e não
sobre a conquista, sobre o predomínio da vontade de Deus e não sobre o
predomínio da vontade do homem. Convivência que poderá ser a
maior dádiva do Brasil ao
mundo.
In O Estado de São Paulo, S. Paulo,
02/02/1958; in 57, Lisboa, nº 5,
Setembro de 1958, p. 21.
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