Quando comecei a ler “As Aventuras de João Sem Medo” de José Gomes Ferreira, escritas em 1933 e terminadas em 1963, logo me apercebi do paralelismo estético existente entre estes dois magistrais escritores latinos. Ambas as obras literárias, de prosa, são um hino à imaginação, tal como a nona Sinfonia de Ludwig van Beethoven é um hino à alegria e à generosidade da Humanidade. Neste ambiente de crise Ética e Económica, em que vivemos, as visões generosas destes dois escritores são exultantes. Sem esquecer, todavia, o legado intervencionista que os seus exemplos de vida nos legaram.
É, certo, que existem diferenças nas suas carreiras, pois o escritor português seguiu mais a veia poética e o escritor italiano mais a via ensaística, embora ambas paralelas às narrativas de contos e de romances.
Italo Calvino escreveu uma trilogia literária fantástica intitulada respectivamente “O Barão Trepador”(1957), “O visconde cortado ao meio”(1952) e “O Cavaleiro Inexistente”(1959). A imaginação e o sentido alegórico que subjaz às suas obras e, em particular, no livro do visconde que está preso por duas consciências antagónicas dão-nos um universo que entra no carácter simbólico do onírico. Esta é, com efeito, a ponte que liga as duas margens do universo temático surrealista da literatura portuguesa e italiana. Igualmente, o esteio criativo deste género de literatura é a defesa da escrita intuitiva que torne emergente o inconsciente dos escritores numa proposta estética que se alavanca no ideário da Psicanálise.
Contudo, afigura-se-me que José Gomes Ferreira quis refundar um universo mitológico que partindo das histórias populares, para crianças, as superasse pelo tom poético imprimido às coisas banais, enquanto Italo Calvino pretendendo respeitar o património imaterial dos contos de fadas quis criar histórias imaginativas com forte sentido alegórico. Neste sentido, a escrita de José Gomes Ferreira emerge de forma mais clara como uma sátira política, às ditaduras (militar, salazarista ou caetanista), ou social, à mentalidade pessimista dos portugueses. Nos arremedos narrativos surrealistas destes dois escritores espreita a alegria das cores fantasistas e das mensagens simbólicas que devem unir os criadores literários aos seus leitores. Vale, pois, bem a pena uma incursão por este património imaterial da Cultura Latina.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
Publicado originalmente, com documentos complementares, em Crónicas do Professor Ferrão
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