por António Cândido Franco
A historiografia – melhor diremos historiologia – de Alexandre Herculano é de tipo documental. Nesse aspecto o historiador não arredou pé dos critérios de indagação e de construção que o século anterior estabelecera. O esforço historiográfico, ou historiológico, de Herculano não foi de inventiva mas de exemplificação; em termos gerais, Herculano pretendeu tornar concreto, por via duma meticulosa e extensa aplicação, um conjunto de regras que, encontrando-se desde há tempo fixado, quer por via do trabalho da Academia Real de História, fundada em 1720, quer pelas cartas de Thierry, surgidas em 1827, não encontrara ainda em Portugal cultor à medida, pelo menos de forma larga e pertinaz.
O resultado foi como se sabe a publicação dos quatro volumes da História de Portugal (1846-47-50-53), em que a efabulação imaginosa, tendendo para o maravilhoso, centrada em figuras excepcionais e míticas, como ainda a praticara no século XVII o grande escritor que congeminara o projecto alcobacense da monarquia lusitana, aparece substituída por uma mentalidade laboriosa e metódica, de tipo científico, que põe todo o esforço na paciente recolha de materiais parcelares, elementos que cerzidos entre si, entendidos em conjunto, visam a decomposição da génese e do desenvolvimento das instituições sociais e políticas da Idade Média portuguesa.
A par deste modelo erudito e crítico, Alexandre Herculano praticou porém pela mesma época uma outra abordagem da História, muito diversa e muito menos condicionada por critérios racionais e analíticos, o que de resto se compreende num homem que foi conviva directo, além de bibliotecário-mor, do extravagante efabulador do palácio da Pena, em Sintra. Falamos do romance histórico que Herculano a bem dizer introduziu em Portugal e que cultivou desde 1837, altura em que começou a dar à estampa nos números da revista O Panorama (1836-1843) as narrativas, curtas ou longas, que viriam depois a constituir, em 1851, os dois tomos de Lendas e Narrativas.
Nesse acervo, muito mais nutrido do que aquilo que a magra edição de 1851 deixa perceber, e ainda nas novelas de escopo medieval que por então deu à luz em livro (O Monge de Cister, O Bobo e Eurico, o Presbítero), deparamos com um lavor artístico de reconstrução, quando não de ressurreição, em que domina a densa conflitualidade psicológica, base da imitação, que nada parece dever ao modelo crítico e lógico do historiador. Aquilo que neste era exigência de rigor, passou no romancista a ser liberdade de inventiva; em vez do documento, base dedutiva, o factor humano, capaz de vida emotiva.
Não passou despercebido ao autor o desencontro dos dois modelos. Entre o romancista que abordava a História como um retratista de arte, cuja importância máxima era transmitir uma impressão de vida, e o historiador que a tomava como uma ciência, cujo propósito era em exclusivo a análise das instituições colectivas, estabelecia-se um tal desacordo que difícil seria a Herculano, fautor de ambos, eximir-se à tensão. Por várias vezes se pronunciou, cotejando Literatura e História, confrontando imaginação e realidade, e não fugiu sequer a tomar posição pela superioridade duma delas.
Foi isso que fez logo em 1840, na revista O Panorama (vol. IV, p. 243), numa altura em que a mão direita compulsava com áspero rigor e manifesta desconfiança os materiais que dariam pouco depois a História de Portugal e a esquerda se entretinha a lavrar, ao sabor da sugestão e do devaneio, com a matéria residual ou não, as lendas e narrativas. Aventou então que o novelista [noveleiro nas palavras castiças e nada depreciativas do autor] pode ser mais verídico que o historiador.
Nesse mesmo passo afirma Herculano que o romance histórico, a novela do passado como ele diz com sabor, é a história da alma do homem, a história íntima dos afectos e das emoções que não se revelam em elementos materiais, acessíveis ao trabalho da razão, mas se deduzem, segundo o autor, do carácter geral das nações e dos homens ou da índole dalgum fragmento conhecido.
Esta capacidade de reconstituir a vida íntima dum homem ou duma época a partir de características gerais e vagas, ou tomando como ponto de arranque uma parcela ínfima conhecida, reconstrução só acessível aos olhos interiores, próprios da imaginação, conta mais verdades, diz ainda Herculano, que boa dúzia de bons historiadores. A reconstrução de que falamos a propósito do romance histórico pode não andar porém muito longe da paleontologia de Cuvier que a partir de vestígios muito escassos, por vezes um único osso, ressuscitou espécies desaparecidas há mais de cinquenta milhões de anos.
Diz Herculano que o historiador probo se escora em documentos, que, sendo reveladores dum tempo, têm todavia um defeito, eufemizado mas inexorável, é que foram muitas vezes lavrados com o intuito de mentir à posteridade. É nesse sentido que o labor próprio do romancista, livre de constrangimentos exteriores, dependendo sobretudo do exercício de faculdades pessoais e interiores, como a intuição e a imaginação, consegue suprir as falhas e os deslizes, mesmo quando involuntários, do trabalho metódico e racional do historiador.
Não surpreende esta tomada de posição de Herculano, que é aliás a orientação clássica desde Aristóteles. Sabe-se que o Estagirita no capítulo nono da Poética avaliou a Poesia como superior à História por ser mais universal, quer dizer, mais chegada à verdade. Herculano – que se mostrou um historiador tão rigoroso, e por isso tão fecundo, que chegou a ser tomado como a fonte da qual derivavam todos os riachos posteriores da historiologia portuguesa – foi enquanto poeta um modelo de energia criadora. É bem possível que uma frase sua, modelada numa sintaxe tão inesperada como pura, rica de vocábulos e vibrátil de ritmo, contribua mais para a glória perene das letras portuguesas que todos os cartapácios que hoje aparecem nos escaparates das livrarias.
Se acrescentarmos à inventiva formal da linguagem a espessura psicológica das personagens, a solidez dos caracteres, a perfeição dos diálogos, o simbolismo representativo das acções temos um escritor inteiro, sem falha, que dominava com mão experiente todos os recessos da criação literária. Herculano punha de pé, do nada, no tablado dos seus romances, um teatrinho vivo de ilusões; era o demiurgo capaz de talhar na letra redonda dos livros o vasto orbe. Quando assim é, o poeta parece valer o Criador da vida. Diante duma tal faculdade, o labor paciente e miúdo da História, tal como o entende o historiador credor de documentos, não passa de mera e piedosa cópia beneditina.
A tensão entre História e Literatura que Herculano trouxe à superfície, dando-lhe consciência e proficuidade, ainda que poucas vezes tivesse ocasião de a solver numa síntese harmoniosa, encontrou na historiografia da geração posterior uma solução convergente e, vamos lá, definitiva. Por isso a História de Portugal de Oliveira Martins, muito mais resumida que a do Mestre, é um composto de dois elementos, qual deles o mais activo, em que a realidade e a imaginação conseguem um notável e proveitoso equilíbrio. Nenhum historiador português soube tão bem caldear como Martins o facto e a ficção ou, para melhor dizer, nenhum conseguiu como ele pôr a ficção ao serviço da ilustração do facto.
Oliveira Martins é o nosso primeiro historiador moderno – antes dele Bernardo de Brito, com outros valores, mostrara idêntico desembaraço – que não se acanhou diante da poesia. Para isso usou o diálogo, trabalhou a densidade psicológica na caracterização das personagens, procurou a representatividade das acções e dos caracteres, quer dizer, deitou mão a todos os meios de que o romancista se serve para engendrar a verosimilhança da sua história. Por isso Pascoaes lhe chamou depois, num rasgo lapidar de luz, o maior dramaturgo da História portuguesa.
Assim como assim, seria injusto resumir a questão em Herculano a uma tensão permanente entre História e Romance, mostrando um Herculano dual, bipolar, em constante divisão, lavrando e imaginando as intrigas romanescas à sombra delirante da Lua e trabalhando com afinco racional e sizo objectivo nos documentos à luz crua do Sol. Herculano foi um escritor dotadíssimo, daqueles que chegam para fazer, quando nada mais há, a glória dum século literário; se a nossa época o ignora a culpa é nossa, que trocámos o verbo pela verba, não dele, que continua a ser um modelo magnânimo de eloquência e elegância. Demais, conscienciosíssimo, teve a fortuna de viver uma vida suficientemente longa para experimentar e abandonar processos; aproveitava deles o que de consentâneo podia haver para o seu génio pessoal e logo os trocava por outros no fito de suprir o que ainda lhe faltava.
Neste sentido pode dizer-se que Herculano, como escritor maduro e com oficina experiente, a perder de vista, de sucessivas galerias, com muitos e bons instrumentos para talhar o que bem entendia, sentiu e ressentiu o dualismo em que caíra e, antecipando a escrita da História que aí vinha, ensaiou a síntese que daria o mote à glosa do futuro. Falamos dos três volumes da História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal (1854-55-59), dados à estampa numa altura em que publicara já, alternando os tempos, o grosso da sua investigação e da sua novelística. Desta vez não há curso diferenciado, quer dizer, as fronteiras entre a arte e a ciência diluem-se no conhecimento do passado. É uma forma distinta de fazer História, em que as bipolaridades anteriores surgem sintetizadas num composto vivo e novo.
O resultado pareceu tão anormal e inovador que muitos anos depois um homem culto como Fortunato de Almeida, formado nos critérios positivos da ciência, ainda avaliava o livro como de todo estranho à obra do historiador, no que foi manifestamente injusto, pois o trabalho em causa é tão-só um novo modo mais livre e mais artístico de entender ou escrever a História.
publicado no nº 7 da NOVA ÁGUIA
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