O valor por excelência de uma pátria é ela ser uma expressão peculiar, o mesmo é dizer uma refracção, da luz da Verdade. Isto significa que uma pátria deve estar de tal modo organizada que deve ajudar aqueles que lá vivem a encontrar o caminho para Deus, isto implica necessariamente que a pátria procure, de algum modo, realizar, na medida do possível, o paraíso na terra. Quando uma pátria não só não o cumpre (ou se cumpre) como ainda se torna um obstáculo, então deve-se deixar claro que tipo de patriotismo se defende ou corre-se o risco de se ser mal entendido e de a acção daí resultante poder ser interpretada em sinal contrário ao que devia.
Aquilo que de mais importante perpassa a identidade portuguesa está como que aglutinado em dois núcleos, que correspondem a dois tipos psíquicos: o homem da terra e o homem do mar. Um é o que tem o amor à terra, a fixidez do interior; outro, nítido, é o do amor pelo elemento líquido, movente. Se um ama a raiz, o outro ama o vento; se um quer ficar, o outro quer partir. Ao longo de toda a nossa história sempre houve possibilidade para que estes dois “tipos” de portugueses se realizassem. Podemos encontrar estes dois tipos nas mais diversas actividades e é particularmente interessante encontrá-los na nossa História e na nossa Literatura.
Hoje, os portugueses da viagem, os homens do mar, não sabem o que fazer e entretêm-se em pequenas guerrinhas de invejas e pequenos pecadilhos de pacote; estes são os que, sem saber o que fazer, porque não têm como realizar a sua natureza, mal olham para o vizinho do lado. Os homens da terra, por seu lado, esperavam que os outros lhes trouxessem histórias do longe e da distância, histórias que os fizessem sonhar. Em vez de histórias ouvem o mal dizer. E assim se envenenam reciprocamente as almas prisioneiras de um país medíocre.
Os homens da terra tinham por função perpetuar a tradição; os homens do mar tinham por função renovar a tradição. Era deste equilíbrio que se fazia a vida em Portugal, naquele tempo em que a Pátria era caminho. Hoje, não é caminho, é cerca ou muro.
Pensando na herança dos homens do mar, não podemos deixar de sentir mágoa, porque os melhores deles, os que iam à ventura e não os comerciantes, encontraram múltiplas tradições, viram que havia inúmeras formas de adorar Deus, viram que só havia um Deus; apaixonaram-se por outros povos, pelas mulheres desses povos, pela terra desses povos, pela paisagem e pelo vento desses povos. Estes que por lá andaram raramente voltaram e, por isso, não temos tantos vestígios entre nós como seria de esperar, tendo em conta a nossa História e os séculos de viagens. Mas esta herança, se não está tanto nos vestígios materiais, está, contudo, seguramente na sua (que é também a nossa) alma. Essa herança não é apenas a dos homens do mar, é também a dos homens da terra, porque estes guardaram em si, naquilo que teve de melhor, o convívio entre as três tradições.
Estas duas heranças conjugadas deviam-nos fazer pensar, à luz deste tempo que vivemos, na importância que pode ter este universalismo de atitude. A questão está apenas aqui: quando vão os portugueses deixar a maledicência e a inveja e procurar o que é que em si, no sangue que lhes vem dos antepassados, os fez partir em tempos? Haverá ainda portugueses à altura da herança que levam no sangue da alma?
Poder-se-á dizer que Portugal não é só isto e que muito mal fez no mundo aos povos entre os quais viveu e que muito mal fez aqui dentro às outras tradições, queimando mouriscos e marranos. É verdade, mas se alguém tiver um pai que tem um defeito e uma virtude, e se tiver herdado ambos, não deve procurar livrar-se do primeiro e estimular a segunda? Nem serve estar sempre a repisar o defeito e a apagar a virtude (como fazem certos historiadores canhotos), nem serve camuflar o defeito por baixo da virtude (como faz certo lirismo interpretativo-patriótico). Lembremo-nos que Sampaio Bruno dizia que hoje estamos colher o que semeamos nos Descobrimentos.
O português tem a obrigação de estar à altura do melhor da sua herança; e o melhor é, pelos dois lados (o paternal do mar e o maternal da terra), o amor às tradições diversas. Portugal não é um povo como os outros, por qualquer razão estranha, é um povo em diáspora, mesmo quando não sai. Só isto explica que assim que acabou de conquistar o território e poderia viver nele descansado, imediatamente tivesse partido para as Descobertas, deixando o país em que, finalmente, poderia viver tranquilamente.
Os portugueses, pela sua herança, deviam ter condições para saber como olhar para a diversidade das tradições, hoje forçadas a conviver. Os portugueses deviam saber que só há um Deus, como diz Junqueiro: “No universo inteiro há uma só diocese e uma só catedral com um só bispo – Deus.” Por que persistem os portugueses em negar a nobreza da sua herança e ficam na sua rotininha de umbigo? É um mistério estranho, este o da decadência dos povos. Mas, como dizia Agostinho da Silva, e parafraseando-o: se Portugal não é um povo eleito, pois que faça o favor de se eleger!
Pedro Sinde
Publicado em: http://filosofia-extravagante.blogspot.com/2010/02/pensando-bolina-27.html
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