9 - Um dia Marx disse que os filósofos haviam apenas interpretado o mundo, quando o objectivo era modificá-lo. Nesse dia resumiu as épocas vindouras. Ao homem retirou-se a liberdade de pensar, e entrámos, com estandartes bem altos e cheios de sonho, na época dos bois de carga orgulhosos. A sua finalidade é produzir. O sistema lapidou no seu âmago uma linguagem cujo objectivo é eliminar a resposta e fomentar a questão, a resposta subliminar para a ausência de respostas é o desprezo do homem que possui muito. O que com pouco se contentar e pouco produzir, é uma nulidade. O pensamento é um hobbie, em nada diferente de assistir a um jogo de futebol na televisão.
10 – Passeava com a minha lira calada por Lisboa e passei por um grupo de jovens pertencentes a várias subculturas, que se amontoavam com outros que eram vagabundos. Estavam sentados em volta de uma fogueira, com insígnias anarquistas e outras manifestações tribais inscritas no solo. Alguns tocavam e outros cantavam, alguns até dançavam, de “calças vermelhas”, num quadro digno da imaginação de D. H. Lawrence. Falavam sobre tudo. Embora tivessem, alguns, pontos de vista muito diferentes, cada discurso motivava o seguinte, nenhum contente com a actualidade excepto os que a abraçavam com uma sede suicida. Reconheci uma das pessoas, a Babalith, e sentei-me ao seu lado. Na minha oportunidade, sugeri alguns minutos de silêncio. O ambiente tornou-se cada vez mais pesado, o grupo quebrou-se e foi cada um para sua casa, à procura de outro entretenimento e de estupefacientes que bastassem e gastassem. Numa idade de bois de carga, ninguém lhes dera trabalho a eles.
11 – Quando retornava de Lisboa encontrei um homem pouco cuidado, já de idade (provavelmente recebia uma pensão) e similar a um asceta sujo. Subira para um poste e por ali ficava, os seus músculos trémulos no esforço. Não perguntei se desejava ajuda para descer, excepto com o olhar. Respondeu-me em voz alta: “Estou bem aqui”. No barco, ouvi a rádio anunciar uma passagem de Robert Louis Stevenson: "Suicide carried off many. Drink and the devil took care of the rest." A subsistência sem trabalho provava que o homem, no estado presente das coisas, e na forma como foi educado, precisa irremediavelmente de mais. Cheguei a rir-me, de mim para mim, com a máxima moderna: “parar é morrer”. A produção e o consumo tornavam-se, conforme as entendia, num e no mesmo acto.
12 - “E sobre o que estavas a dizer da linguagem?” perguntou-me a rapariga ao telefone. Eu lembrei-me do que uma vez um colega gnóstico que se formou em sociologia me disse: “A sociedade é uma lavagem cerebral tamanha que há de se apagar até a sua memória, de forma a atingir o estado de plenitude primordial, a que os homens chamaram de liberdade”. O homem chegou a um ponto de evolução em que pretende evadir-se, senão vejamos como todas “as ferramentas fazem ferramentas”, como os maiores entre nós servem a economia e a tecnologia, bem como, arrastados, mas nem conscientes nem sequer inconscientes disso, os mais pequenos. “A questão da linguagem, cobrindo uma vasta gama, manifesta-se na sua extremidade um pouco como a que costumas retratar com as tuas teorias do cyberespaço, do capitalismo e do informatismo, ou do entorpecedor mundo do espectáculo – a máxima evasão à ameaça do outro, do exterior, do mundo, e de tudo o que não for suficientemente vago. Assim imagine-se Zenão de Elea e o Paradoxo do Estádio, este pressupunha que se aplicarmos a continuidade a um movimento, e o conceito da infinita divisão, matematicamente, esse movimento, como uma unidade, nunca existiu. Se percebeste onde quero chegar, e retirares daqui a palavra “matematicamente”, trocando-a pela realidade (esquecendo a virtualidade matemática) vais conceber que a maratona jamais poderia acabar. Este tipo de linguagem já conquistou aquela que é quase sempre a última resistência, a arte – e com ela os servos da economia tomaram conta desta arte, tornando-a mercado (o beco sem saída acolhe iguais). Nos dias que virão aquilo que imaginaste por exercício ser a realidade, esta vacuidade, será de facto a realidade. Entre nós, conforme as possibilidades matemáticas, estarão todos os estranhos, os nossos rostos serão os rostos dos estranhos, submetidos à mesma condição ad infinitum: quero com isto dizer que, tanto como o outro, deixaremos de ter rosto. Babalith, o infinito, como quantidade, nunca será o infinito como qualidade: e há de nos roubar, a confusão entre a quantidade e a qualidade, tudo o que alguma vez foi valoroso.”
“Quererás dizer, metaforicamente e não só, que onde haviam homens contemplarás números, máquinas e ferramentas, estendidos sobre um deserto de ideias.”
Certo. No entanto o meu infinito não é este, ele reúne-se (ao invés de se dividir) num ponto para formar a minha mão enquanto ela toca um rosto, e vem acordar com gotas de orvalho o corpo, o coração e o silêncio da terra. Tudo o resto é “pânico num teatro sem vida”, alienação e consequência de um materialismo sem paganismo.
1 comentário:
Chama-se a isso o progresso...
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