Terminou a 29 de Junho de 2009 o ano Paulino comemorativo dos dois mil anos do nascimento do apóstolo de Jesus Cristo – Paulo de Tarso da Cilícia, na actual Turquia. Este texto resultou de algumas reflexões que fui fazendo no grupo Paulino a que pertenci na Igreja de Nossa Senhora do Amparo, na paróquia de Benfica, em torno da Antologia de D. Anacleto Oliveira, bispo auxiliar de Lisboa ( Um ano a caminhar com São Paulo, Coimbra, Coimbra Editora, 2008) e das esclarecidas conferências que tive o privilégio de assistir (deste autor, do teólogo Juan Ambrósio e do Professor Doutor Marcelo Rebelo de Sousa).
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O legado cultural da vida de São Paulo e das suas Cartas apostólicas é de uma notável modernidade como terei oportunidade de demonstrar, como aliás já o fiz publicamente numa pequena intervenção num sarau cultural no salão paroquial da supracitada igreja[1]. (…) Na minha perspectiva, São Paulo foi um precursor na defesa dos Direitos Humanos no contexto histórico do império romano, como já o sustentei algumas vezes, porque universalizou a religião cristã ao evangelizar os gentios, pois transmitiu-lhes a “Boa Nova” da Salvação por Jesus Cristo.
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Efectivamente, esta vertente de defesa dos Direitos Humanos emerge em São Paulo do sentido da igualdade que atribui a todos os Homens mediante o tratamento fraternal de “irmão” que concede a todos os crentes, independentemente do estatuto social de cada um. Assim, no seu modo de ver o importante, não era se alguém tinha o estatuto de centurião ou de escravo, era que esse indivíduo era filho de Deus e, portanto, tinha igual dignidade humana o escravo e o cidadão, o pobre e o rico, devendo todos ser afectuosamente tratados como “irmãos”.
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Importa, agora, examinar duas sugestivas visões da transfiguração de São Paulo de perseguidor de cristãos em obstinado conversor cristão de almas pagãs. Na realidade, há duas interessantes e antagónicas interpretações da sua conversão a caminho de Damasco que merecem ser conhecidas. Enquanto uma corresponde à versão do crente, a outra corresponde à versão laica do ateu. A primeira interpretação, recente, é a do teólogo Juan Ambrósio, da Universidade Católica de Lisboa, que lê a conversão de São Paulo, pelo encontro místico com Cristo Ressuscitado, como um processo lento e comunitário, ou seja, a vivência inicial de São Paulo nas comunidades cristãs, a seguir a esse encontro genésico, constituiu na sua opinião um meio de aprofundamento do conhecimento de Cristo[2].
A segunda versão deste acontecimento da vida de São Paulo, que quero referir, é-lhe historicamente anterior (1934) e corresponde à versão laica de um escritor português do Saudosismo ( Teixeira de Pascoais, São Paulo, Lisboa, Editora Assírio e Alvim, 2002 ), contaminado pelo ambiente anticlerical da época, que encara São Paulo como um poeta que se converteu à fé no “Ressuscitado” por um forte sentimento de remorso pela morte de Santo Estêvão, isto é, a aparição de Cristo Ressuscitado dever-se-ia à sua má consciência por este martírio[3].
São Paulo pela sua vasta cultura, formado na escola judaica de Gamaliel, acabou por ter um papel fundamental na História do Cristianismo ao abrir intelectualmente esta religião, através das suas Cartas, aos valores morais e espirituais que lhe estão subjacentes. Protagonizou, assim, a nobre missão pedagógica de transmitir os valores éticos e as virtudes cristãs que deveriam pautar a conduta dos fiéis do seu tempo e das gerações vindouras.
Desta maneira, revelou aos seus contemporâneos, no contexto do desvirtuamento moral do império romano em que a corrupção se generalizara, o inestimável valor das virtudes teologais ( fé, esperança e caridade ) que deviam ancorar a vida dos cristãos em meio social tão adverso.
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Em suma, São Paulo é um exemplo de vivificante actualidade, pelo seu optimismo cristão, que nos pode ajudar a enfrentar espiritualmente esta crise multipolar (energética, climática, económica, social, política, moral, etc.) deste complexo mundo Globalizado em que vivemos. (…) Foi, aliás, este dantesco cenário internacional que mergulhou o mundo naquilo que, alguns autores, chamam de “capitalismo de casino” e que favoreceu escandalosas fraudes financeiras em várias regiões do mundo.
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Em conclusão, não restam dúvidas que a alavanca para garantir o bem-estar material e espiritual nas populações deste mundo globalizado passa pela reintrodução do legado ético na vida política internacional e nacional, o que poderá ser a solução para a desejada reaproximação entre cidadãos e governantes[4]. Contudo, afigura-se-nos fundamental que se quebrem alguns pressupostos identitários do mundo em que vivemos, nomeadamente é indispensável que os poderes políticos não estejam manietados pela força das grandes autoridades económicas e financeiras, mas ao invés que sejam guiados pelo senso ético.
Ao fim e ao cabo, o revolucionário exemplo de São Paulo no quadro histórico de um império materialista assume uma modernidade cultural e cívica no tempo presente absolutamente entusiasmante.
Nuno Sotto-Mayor Ferrão
[1] Comunicação que fiz, em representação de um grupo Paulino de reflexão a 25 de Junho de 2009, num sarau cultural, no salão paroquial de Nossa Senhora do Amparo em Benfica, dinamizado pelo pároco José Traquina.
[2] De acordo com Conferência proferida pelo teólogo Juan Ambrósio no Anfiteatro da Escola Secundária Padre Alberto Neto, em Queluz, a 16 de Abril de 2009.
[3] “(…) Quem lhe apareceu, na estrada de Damasco, foi o seu remorso personificado em Jesus Cristo, o deus da sua vítima. (…) O Deus de Estêvão ficou a ser o Deus de Paulo. (…)” in Teixeira de Pascoais, São Paulo, Lisboa, Editora Assírio e Alvim, 2002, p. 31.
[4] Sobre esta permanente questão da distância entre cidadãos e governantes vale a pena ler o magnífico romance do nosso escritor laureado com o Prémio Nobel da Literatura: José Saramago, Ensaio sobre a lucidez, Lisboa, Editorial Caminho, 2004.
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