Tudo isto vem a propósito da homenagem de cada época, da dificuldade em eleger uns maiores que o sejam efectivamente e da belíssima referência ao templo da eternidade - em cujos nichos, aliás, Camilo andará bem mais à larga do que a modéstia ou a esperança no futuro o fizeram supor.
Eu não vejo nada de mal nas homenagens; e gostei de ler a sua lembrança dos pedaços de lata do Imperador, pela simples razão de que se tratava aí de dar a quem antes já tinha dado: no meu texto de ontem, já admiti a excepção dos guerreiros. Nem vejo grande mal no Panteão, que aliás ninguém visita; vejo principalmente muito mal numa outra coisa.
O Panteão, é claro, já existe - em Portugal desde 1916, em França desde 1791: nos dois casos, após uma Revolução - cujos méritos não é aqui ocasião de apreciar - ter consagrado uma reinvenção da Pátria, e desconfio de que por iniciativa empenhada de alguns dos seus denodados reinventores; aprendi agora mesmo que a subtileza de algum governante elevou (?) também a esse estatuto, em 2003, o mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, o que significará, atrevo-me a supor, que alguém entende que Afonso Henriques está agora, ao fim de oito obscuros séculos, merecidamente panteonizado - não gostamos talvez de pensar que ele preferisse repousar num simples templo cristão, e sempre fica aberta a possibilidade de, sem de lá retirar o homem, transformar aquilo num espaço polivalente, tão mais a gosto dos nossos dias.
Existe o Panteão, portanto; mas existe, da mesma forma, o cemitério da Lapa - onde, pela mão do acaso, ou pela do destino, Camilo repousa mesmo defronte do túmulo do marido de Ana Plácido: nocturnas malhas que o Mistério tece.
E é aqui que, como disse, vejo grande mal: não é a entrada no Panteão, mas a saída da Lapa que me impressiona, e pela mesmíssima razão que me impressionaria ver São Miguel de Seide ou a Samardã ou a Rua da Rosa rebaptizadas com o nome de Camilo: nós, modernos, mexemos demais no que devagarinho se foi fazendo, e se foi fazendo sem ninguém querer. Os inventores franceses do Panteão foram os mesmos que tentaram reinventar os nomes dos meses: mas por mais bonito que seja o Floreal, não nos compensa da perda do Maio. Quando todas as histórias forem só a história da Pátria, a Pátria não nos poderá mais contar história nenhuma. E quando se organiza demasiado o mundo, o mundo transforma-se num espectáculo, ou na coisa insípida que são agora as maçãs iguaizinhas dos supermercados: simulacro da vida simples, simulacro da morte constante. E nada disto tem que ver com a razão: a explicação para o nome "Samardã", ou para o nome "Seide", parecer-nos-ia agora fútil, se a conhecêssemos - dizem que Guadiana quer apenas dizer "o rio rio": será razão para lhe chamarem um dia rio Casimiro Ceivães? Espero bem que não.
Por fim, confirmemos que é só de homenagem que se trata. No Panteão, meu caro, estão os restos mortais de alguns maiores; mas estão também memoriais fúnebres, ou cenotáfios, de alguns outros que se não quis para lá levar, ou que se ignora onde repousam. E grandes, grandes são eles: o Gama, o Albuquerque, o Infante, o Camões, Cabral, Nuno Álvares. Não poderemos deixar Camilo nas sombras graníticas da Lapa, para descanso dele e dos que ainda gostam de um mundo indomesticado, e cenotafiá-lo, para descanso da Pátria?
2 comentários:
Nenhum de nós será capaz de convencer o outro, mas a discussão não deixou de ser interessante. Poderá ter contribuído para agitar o vento que sustenta o voo planado dos milhafres.
Um abraço
António Trabulo
É também a minha esperança...
Um abraço sempre
Casimiro
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