(e por favor não me venham falar da estabilidade financeira do Salazar. O mundo mudou entre 1971 e 1973, os tempos do 'choque petrolífero', tanto como mudou Portugal em 1974. Alguns sonhadores costumam falar do que seria Angola sob administração portuguesa, ao lado de uma África do Sul branca e invencível. Claro. Outros sonhadores não vêem diferença entre o mundo que assistiu ao Maio de 68 em Paris e o mundo que Reagan encontrou e geriu.)
Fazer parte da Europa significa, hoje, muito mais do que alguma vez historicamente significou - e fazer parte da Ibéria também. Significa, hoje, uma coisa que os políticos portugueses nunca quiseram desde os tristes tempos do liberalismo, e de que os intelectuais portugueses tendem a fugir como o diabo da cruz: responsabilidade. Responsabilidade para decidir quando é tempo de decidir sozinho, para dialogar e partilhar decisões quando é hora de decidir em conjunto. Para voar de falcão e para voar de coruja, como sabiamente recomendava D. João II, talvez o maior político que a família real portuguesa alguma vez gerou (o que não quer dizer que tenha sido o maior dos nossos reis). Responsabilidade que não seja a da conversa da treta de quem não tem lugar no governo ou o autismo de quem tem. Responsabilidade (e eficácia) que está, mal ou bem, no melhor que a tradição europeia inventou. Às vezes chama-se a isso democracia, em prejuízo do significado original desta duvidosa palavra.
Como quase sempre, o problema tem duas faces.
Por um lado, há oitocentos, há quatrocentos ou ainda há cem anos, desde que Castela nos não invadisse e a pudéssemos atravessar por terra ou costear por barco a caminho dos mares do Norte ou do Mediterrâneo, nada mais era preciso e tudo estava bem. Hoje, obviamente, não é assim. A construção de uma central nuclear em Espanha (ou em França), a preciosa água do Tejo e do Douro (que não são rios nacionais), a chegada de gás natural vinda da Argélia ou da Rússia, a posição de princípio e a actuação prática face aos imigrantes e aos refugiados, que cada vez mais são multidão, o permanente agudizar da catástrofe étnica, social, militar e política no agora chamado Médio Oriente, as redes cada vez mais complexas de dependência alimentar, económica, financeira (não confundir com a económica), a insuportável transformação mundial das relações de trabalho do último capitalismo traduzidas por um exército de trabalhadores precários ao serviço de empresas anónimas e nómadas, o colapso da estrutura industrial 'pesada' que fez nascer o século XX, as perturbações climáticas (de origem humana ou não), a mercantilização brutal de todas as esferas da vida, a inacreditável intervenção dos 'poderes públicos' na mais insignificante decisão individual, tudo isso faz com com que o desinteresse ou o cinismo (sincero ou cinico) em relação ao destino e ao lugar dos europeus - e dos portugueses entre eles - não mereça ser visto como muito mais do que traquinice infantil ou mais ou menos compreensível amuo.
Por outro lado, é certo que a Europa - a da união política - nasceu mal, e mal continua. Nasceu entre países devastados pela guerra; militar, económica e politicamente dependentes de uma potência - os Estados Unidos - e aterrorizados, e com razão, com outra - a União Soviética. Nasceu sem explicar ao que vinha, o que queria, o que arrastaria consigo. Nasceu como salvadora e guardiã de um capitalismo em que ainda era possivel acreditar, e com a confiança de quem ainda dispunha de vastas extensões do mundo como colónias abertas ou disfarçadas. Nasceu e gerou a mais inacreditável burocracia que alguma vez se viu a Oeste de Berlim, ao pé de quem Napoleão não passa de um pândego e Bismarck não passa de um folião. Nasceu, cresceu e está aí - para nosso bem e nosso mal, como o mundo todo está desde a fundação do mundo.
Deixarei para outros textos três coisas: a responsabilidade que Portugal quis ter, enquanto pôde ter, nos negócios comuns da Europa; as vias e transvias do famoso destino atlântico de Portugal; o lugar da Europa num mundo cada vez mais feito de BRIC, e de bric-a-brac.
6 comentários:
Portugal «não faz parte» da Europa (a Península Ibérica é um sub-continente europeu, geográfica, culturalmente e etnicamente), faz parte da Civilização Mediterrânica, com as suas duas margens - mas deve fazer parte da União Europeia.
P. S. Depois continuo... vou matar uns Alemães no «Blitzkrieg» a ver se me dá o sono (os jogos de computador são, até agora, o meu melhor soporífero)... ;)
Abraço.
"Portugal faz parte da Europa, embora pudesse, teoricamente, não fazer parte da União Europeia. É lastimável que entre nós cada vez mais se confundam as duas coisas. É também lastimável que entre nós se finja não perceber que, se Portugal não fizesse parte da União Europeia, não faria parte da Zona Euro - o que, no ano passado, teria tido as lindas consequências que teve para a Islândia (a falência, recorde-se aos distraídos), com o provável efeito multiplicador que a tradição de péssima gestão e desorganização crónica dos nossos 'dirigentes' politicos e financeiros haveria de trazer. Talvez alguém se lembre do que estava a ser a patética evolução do escudo (e da inflação) nos anos que precederam 2002."
> Seja... mas com o escudo teríamos a famosa arma cambial que nos defenderia e dar mais soberania numa época em que muitos países (a China, a começar) usam como arma comercial. Que agora nos é vedada...
> E sobretudo quantas exportações já perdemos nós por causa da excessiva força do Euro?... E com elas, emprego, balança comercial, etc...
"Fazer parte da Europa significa, hoje, muito mais do que alguma vez historicamente significou - e fazer parte da Ibéria também. Significa, hoje, uma coisa que os políticos portugueses nunca quiseram desde os tristes tempos do liberalismo, e de que os intelectuais portugueses tendem a fugir como o diabo da cruz: responsabilidade. Responsabilidade para decidir quando é tempo de decidir sozinho, para dialogar e partilhar decisões quando é hora de decidir em conjunto. Para voar de falcão e para voar de coruja, como sabiamente recomendava D. João II, talvez o maior político que a família real portuguesa alguma vez gerou (o que não quer dizer que tenha sido o maior dos nossos reis). Responsabilidade que não seja a da conversa da treta de quem não tem lugar no governo ou o autismo de quem tem. Responsabilidade (e eficácia) que está, mal ou bem, no melhor que a tradição europeia inventou. Às vezes chama-se a isso democracia, em prejuízo do significado original desta duvidosa palavra."
> Mas essa é parte do problema... com tanta responsabilidade a ser transferida para Bruxelas, não estamos a dar argumentos para que os nosso débeis "políticos" culpem o mal que se faz na "Europa"?
> Portugal sempre teve um problema de elites, e estas agora, nem sequer são portuguesas! Isso não pode ser bom...
Caro Clavis: de todos os países pequenos, só talvez a Suiça teve a 'arma cambial'. E isso era nos bons tempos - nunca é por demais repetir: nos bons tempos.
Eu lembro-me do George Soros a atacar, sozinho, a Libra inglesa, e a fazê-la tremer. Lembro-me de um discurso de um ministro das finanças português que nos fez perder, nas horas seguintes, algumas centenas de milhões de contos, na tal 'guerra cambial'. E os nossos amigos brasileiros talvez nos possam contar histórias sul-americanas das últimas décadas.
O raciocínio antigo, de que a moeda de um país vale o que valer a sua riqueza, deixou de ter validade no mundo financeirizado em que vivemos (aliás, se não fosse assim, onde estaria o dólar...)
Quanto às exportações... duvido de que valham o petróleo que importamos. E que, felizmente para nós que estamos no chapéu de chuva do Euro, ainda é pago em dólares.
Quanto ao outro ponto: o que está a ser transferido para Bruxelas é poder, não responsabilidade. E as duas coisas são muito diferentes - e aí sim, a grande falha ou uma das grandes falhas da Europa. Propões sairmos por causa disso?! Eu proponho exercer o poder que temos. Começar, por exemplo, por ler os dossiers. Votar em sentidos claros. Coisas dessas.
... E conspirar com a Europa Mediterrânica contra os norte-europeus... Eles é que são os bárbaros que ficam apalermados quando vêem prata e ouro - nós preferimos os azulejos, as tapeçarias, as filigranas, os vitrais... ;)
A França: romana, mediterrânica, céltica, bárbara (e não, Klatuu, não falo de Versalhes e do pó-de-arroz), arco e solidão da Europa.
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