Na vasta, valiosa e venerável
obra de António Quadros, um dos livros tem por sugestivo título A ideia de Portugal na Literatura Portuguesa
dos últimos 100 anos (Fundação Lusíada, 1989). Apesar de ser expressamente
dedicada a Fernando Pessoa – “À memória do poeta Fernando Pessoa, no ano do
Centenário do seu nascimento e sessenta anos depois de ter escrito o primeiro e
o último poema da Mensagem” –, a obra
é, mais directamente, uma ramificação, actualizante, d’Os Poetas Lusíadas, de Teixeira de Pascoaes.
Tendo como propósito expresso
o de “repensar o carácter original da paideia
portuguesa, partindo de uma como que ‘amostragem’ histórica, teorética e
crítica de como os nossos escritores dos últimos 100 anos visionaram
concretamente a ideia de Portugal” (p. 17), António Quadros dedica, no âmbito
do que designa os “Poetas da Resistência Lusíada”, um capítulo a Couto Viana,
sugestivamente intitulado “António Manuel Couto Viana, entre o desespero e a
esperança apesar de tudo”.
Em homenagem a estes dois
nossos insignes cultores da portugalidade – que completariam 100 anos em 2023
–, recordamos aqui esse breve texto, tão breve quanto lapidar, a ponto de não
precisar de qualquer comentário – excepto, quanto muito, o seguinte: algumas da
considerações que António Quadros exprime sobre Couto Viana aplicam-se
igualmente a ele próprio, pois que, tal como Couto Viana, também António
Quadros não tem sido suficientemente lembrado, o que decorre sobretudo de (más)
razões ideológicas. O que não surpreende, de todo: numa época em que a
ideologia dominante é cada vez mais anti-patriótica, nada de mais expectável
que a censura vigente se vingue nestes dois Autores.
Assim, começa António Quadros
por escrever o seguinte: “António Manuel Couto Viana (1923), que em 1948 se
revelou desde logo grande poeta com O
Avestruz Lírico que nos anos 50 foi um dos companheiros da Távola Redonda, essa revista que ergueu
o facho de uma poesia moderna em conciliação com as raízes da nossa tradição
lírica e que desde então publicou livros excepcionais, como O Coração e a Espada (1951), Mancha Solar (1959), A Rosa Sibilina (1960), Relatório Secreto (1963), Desesperadamente Vigilante (1968), Pátria Exausta (1971), Raiz da Lágrima (1973) ou Nado Nada (1977), cantou, em Ponto de Não Regresso (1982), a saudade
da pátria ideal, o lamento pelo que chamou este tempo de trevas, a esperança
sebástica numa restauração ainda não impossível e o impulso para a transcensão das
grades que a seu ver prendem a nação. Incluídos na antologia da sua Poesia Completa (1948-1983), sob o
título de Era uma vez uma voz (1985)
estão ainda os seus poemas posteriores de Entretanto
entre tantos e de Retábulo para um
íntimo Natal. Recentemente (1988), Couto Viana publicou ainda A Oriente do Oriente.”.
E acrescenta, logo de seguida,
António Quadros: “Sem ambiguidades, Couto Viana vê o 25 de Abril e o período
subsequente como a época da catástrofe, que precipitou o país para a decadência
e para proximidade da morte. Sem ambiguidades, afirma-se nacionalista,
sebastianista e monárquico. Mas é chegado o momento, cremos, de os adversários
e os oponentes se ouvirem uns aos outros. Uma voz como a de António Manuel
Couto Viana tem de contar para a força das coisas porque exprime, mais do que a
sua própria emotividade pessoal, os ecos de uma profunda vivência nacional,
silenciada ou reprimida que seja pelos ideais convencionais hoje dominantes,
embora já não tão seguros de si e dos seus dogmas.
Organizado em estrutura
coerente, Ponto de Não Regresso
divide-se em cinco partes: No Signo de
Camões; No Signo da Páscoa; No Signo do Desejado; No Signo da Restauração; e No Signo do Cárcere.
Em No Signo de Camões, Couto Viana começa por marcar com desespero o
contraste entre o Portugal dos «Lusíadas» e o Portugal de hoje, como no poema A Camões, dolorosamente: Coroa, bandeira, brasão e lema,/ O vasto Império do
coração,/ Vou encontrá-los no teu poema:/ Na pátria, não!// Corro o teu canto
de canto a canto,/ Numa demanda de salvação;/ Ali, a glória do herói, do
santo:/ Na pátria, não!// Ali, num reino ditoso e amado,/ Reina sem névoa
Sebastião;/ Ali, presente pureza passada:/ Na pátria, não!// Ali, se enlaçam
beleza e graça/ E, na certeza de ter missão,/Tenho o tamanho da minha raça:/ Na
pátria, não!
Na Carta apócrifa de Camões para hoje, assim principia: Exaltei o passado, num presente/ Triste, apagado, vil./ Mas havia o futuro, mar em frente/ Para epopeias d'África e Brasil.
Para concluir, confundindo a
sua voz com a do Poeta: Hoje, o presente/
É ainda mais vil e apagado e triste/ Porque,
no mar em frente,/ Nenhum futuro
existe.// A cobiça e a traição/ E não um rei, é hoje quem governa:/ Dorme, pois, para sempre, coração!/ Sê tu, silêncio, a minha pátria eterna!
Em No Signo da Páscoa, porém, a esperança reacende-se, com a analogia com
o Cristo pascal, morto e ressurrecto:
Por isso já não creio na agonia/ Do meu
país:/ Não morre a terra e tudo principia/ está viva a raiz!
E, em No Signo do Desejado, é mais uma vez o velho mito que levanta o
ânimo do poeta: E quem trará na mão o
jugo e a lança?/ Seu vulto, em contraluz, saberei distinguir?/ Ilumine-lhe a
face, a fé, a esperança/ Sepultadas,
em flor, em Alcácer Quibir// Que novo
Império destinado/ Lhe tem Deus, de
quem é capitão?/ O futuro da glória
do passado/ No céu, no mar, no coração!”.
Terminando António Quadros
este seu lapidar texto sobre Couto Viana com a alusão a um “novo despertar”: “Em
No Signo da Restauração há um apelo
ao novo despertar: A nossa pátria jaz em
mão fechada e alheia!/ É já dela o
tractor e o chão arado,/ A moeda, a
oficina, o pão da ceia!.../ Pra não
termos futuro, esmagou o passado!// Vem
com teu ceptro justo, punitivo e clemente!/ Vem ser manhã na noite sepulcral!/
Vem expulsar de nós a névoa do presente/
E acorda Portugal!
No Signo do Cárcere, a quinta parte do livro, inclui os poemas mais
memorialistas e mais intimistas, pois António Manuel Couto Viana revive
experiências dolorosas, desilusões e quebras de ânimo: Porque é que a pátria envelhece?/ Prenderam a mocidade:/ Seiva, sol que fortalece/ A idade// Porque
choras, Portugal?/ — Prenderam o meu
futuro:/ Jamais terei ideal/ Mais
puro.
Noutro poema: A luta heróica pela pátria ideal/ Arrasta
umas grilhetas:/ Só vive livre
Portugal/ No coração dos seus poetas.
Em poucos líricos, como em
Couto Viana, é tão pungente a dor por algo que se perdeu, menos do nosso
passado, do que do nosso futuro. Mas os poetas acreditam na força regeneradora
e mágica do seu verbo! Por isso se lhe vai esvaindo o desolador pessimismo com
que principiara o seu livro...
Dois ou três anos depois,
efectivamente, é já expectante, senão confiante o ânimo do poeta no magnífico
tríptico de Sonetos a que deu o anagógico título de Contemplário.
Leiam-se os dois tercetos do primeiro:
Sigo solene como um ritual,/ A caminho da pátria prometida/ (Sempre
dentro de mim, de Portugal).// Pedaços
e pedaços reunida,/ Do sangue celebrado no Graal/ Da vida gloriosa além da vida.
Também os do seguinte Soneto: Cristo das Cinco Chagas da Vitória,/ Destrói
toda a palavra transitória,/ Ergue em nosso futuro o Teu sinal.// Traze da ilha onde se oculta, a nave./ E,
nela, o Mestre esclarecido e grave./ E, nele, um só e imenso Portugal.
E enfim o belíssimo e «espiritual» remate metanóico do terceiro Soneto: Pela nave, ou aeronave ou astronave,/ Avé, o meu Senhor em forma de ave,/ Sempre mais perto quanto mais distante.// O início sacral, guia do mundo,/ Verbo sobre a cabeça do profundo,/ É Portugal a língua flamejante!”.
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