Se há teoria que foi e continua a ser,
nos tempos de hoje, grosseiramente deturpada é a do “luso-tropicalismo”, de
Gilberto Freyre. O equívoco de base é (quase) sempre o mesmo: ver essa teoria
como uma mera descrição da realidade – em concreto, do império ultramarino
português – e não como um paradigma, um ideal, a cumprir. Tendo sido
perspectivado como uma mera descrição da realidade, o “luso-tropicalismo” foi,
fatalmente, (mal)visto como uma caução do império ultramarino português. E o
próprio Eduardo Lourenço não escapou a esse equívoco de base, ao ter-se
referido a ele como “um nefasto aventureirismo intelectual, incoerente e
falacioso”[1].
Neste ponto, Eduardo Lourenço caiu no
mesmo equívoco de base daqueles que, ainda hoje, renegam a obra de Almada Negreiros
– por ter sido, inequivocamente, um artista do regime do Estado Novo – ou o
Fernando Pessoa da “Mensagem – por ter sido, igualmente de forma inequívoca, um
protegido de António Ferro. Curiosamente, bem mais compreensivo foi Eduardo
Lourenço quanto ao “movimento da ‘filosofia portuguesa’”, ao tê-lo
caracterizado como uma “reacção, em boa parte justificada, contra o pendor
mimetista e o consequente descaso que ele implica de inatenção a nós próprios”[2].
Perspectivado como uma mera descrição da
realidade, o “luso-tropicalismo”, obviamente, suscita as mais ambivalentes
reacções. Mesmo o tão celebrado fenómeno da miscigenação padece de uma
ambivalência de base – por um lado, foi um fenómeno positivo, por ter promovido
o cruzamento étnico, ao contrário do que aconteceu noutras experiências
imperiais europeias (sendo que este facto não deveria ser de todo desprezível,
como em geral acontece); por outro lado, tudo isso aconteceu sob uma hegemonia
pré-determinada – não só étnica como de género. Por regra, como sabemos, esses
cruzamentos deram-se entre homens “brancos” e mulheres “negras”. E as poucas
excepções que existiram foram apenas isso: excepções que confirmam a regra.
Ora, nestes nossos tempos em que a separação étnica é de novo agitada como bandeira político-social – desde logo, por movimentos de “extrema-direita”, mas também por movimentos de “extrema-esquerda”, que defendem a impossibilidade de qualquer sã convivência étnica –, o “luso-tropicalismo” de Gilberto Freyre – se perspectivado como um paradigma, um ideal, a cumprir, e não já como uma mera descrição da realidade – é, decerto, uma visão a ter em conta nos tempos de hoje, em prol dessa possível e desejável sã convivência étnica. Num tempo em que se chega a defender publicamente que um “branco” não pode sequer traduzir um texto de um “negro”, a visão de Gilberto Freyre é decerto heterodoxa e, por isso, mais pertinente do que nunca.
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