Na vasta bibliografia de
Agostinho da Silva, ainda não inteiramente publicada, uma das obras mais
relevantes tem por título Um Fernando
Pessoa. Como se infere do título desta obra, publicada em 1959, no Brasil –
onde Agostinho da Silva se radicou cerca de um quarto de século, entre meados
dos anos 40 e finais dos anos 60 –, trata-se uma leitura pessoal de Fernando
Pessoa, em particular da sua “Mensagem”, em que Agostinho da Silva desenvolve a
sua própria visão: não apenas de Portugal e da cultura portuguesa, mas,
sobretudo, da cultura de língua portuguesa – da cultura lusófona, diríamos nós
hoje –, conforme, de resto, já salientámos numa obra da nossa própria autoria,
lançada no âmbito das comemorações do centenário do seu nascimento (Visões de Agostinho da Silva, 2006).
Ao contrário de Fernando
Pessoa, que mereceu de Agostinho da Silva muitas e alongadas referências, o
mesmo não aconteceu com Adolfo Casais Monteiro. Ainda assim, há um texto que
sobressai – falamos do texto intitulado “Alguma nota sobre Casais”, publicado
nos Cadernos de Teoria e Crítica
Literária (Araraquara, SP: Setor de Teoria da Literatura da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara, nº 4, Julho de 1974, pp. 15-26).
Pelo seu interesse, quer por aquilo que Agostinho da Silva nos diz sobre Adolfo
Casais Monteiro, que, de forma reflexa, por aquilo que Agostinho da Silva nos
diz sobre si próprio, eis o texto que iremos aqui apresentar.
Assim, neste texto, começa
Agostinho da Silva por evocar a criação da primeira Faculdade de Letras do
Porto, falando mesmo de um “milagre” – nas suas palavras: “De vez em quando
sucedem milagres, se Deus os consente e neles se empenham os homens
[saliente-se aqui a ressalva: os milagres sucedem “se Deus os consente e neles
se empenham os homens”]. Num país de ensino rotineiro, com mais interesse pela
nota e pela autoridade do catedrático do que respeito pela ciência e liberdade
de discernimento pessoal, surgiu a Faculdade de Letras do Porto, que era toda
ao contrário, inimiga da burocracia e fosse do que fosse que pudesse lembrar
Coimbra e seus malefícios de séculos e incitadora de descoberta própria mais do
que de aprendizagem servil, bem longe de ser a escola técnica de profissionais
de ensino em que se transformaram as outras.”.
Essa Faculdade, como logo de
seguida acrescenta, “em dois grandes grupos se dividia” – “liderado um por
Teixeira Rego, que podia ter sido bom matemático e físico – ouvi-o propor a
teoria da luz de Broglie antes de Broglie — e ensinava filologia, pois ainda
se não tornara ciência ou moda ser pedante em linguística…”; “o outro por
Leonardo Coimbra, que podia também ter sido matemático e campeão remador, como Rego
de ténis, e ensinava filosofia, ou antes, que isso era o certo, vivia
filosofia, com muita agudeza e saber, como mestre, e muita angústia e caminhos
torcidos, como homem, dando nota boa a quem se interessava e a quem se não
interessava pela matéria — tive distinção na turma destes, pois que era o
indo-europeu de Teixeira Rego meu pasto favorito —; tudo no Café Majestic,
como o filólogo na [Livraria] Lelo.”.
Eis, aqui, um testemunho
confirmado por muitos outros: Agostinho da Silva sempre se sentiu mais próximo
de Teixeira Rego, mas, apesar de nunca ter sido “leonardesco”, como chegou a
dizer, bastas vezes evocou o magistério de Leonardo Coimbra – daí,
nomeadamente, estas suas palavras: “Era a largueza de espírito do Leonardo que
tinha formado aquela Faculdade. Ali se percebia por que razão uma instituição
universitária não é tão importante como, muitas vezes, se julga. Ele confiava
nalguma outra coisa que não eram os regulamentos, as notas, as pautas e essa
trapalhada toda” (in Jornal de Letras,
12 de Janeiro de 1987). Ao longo da vida, irá, com efeito, reiterar que essa
“era uma Faculdade sem uma organização rígida e em que se dava muito mais
atenção a quem elaborava perguntas do que a quem fornecia as respostas que
vinham nos manuais” –, nunca esquecendo não só Leonardo Coimbra – “um boémio do
pensamento (...), um homem capaz de atitudes que os catedráticos não tomam” –
como, sobretudo, Teixeira Rego – “uma das pessoas mais inteligentes que
conheci”[1].
Ora, é precisamente nesse
contexto estudantil que Agostinho da Silva evoca o seu colega – apenas dois
anos mais novo: “Nunca vi ninguém estudar tanto e tão seriamente como Casais
naquela Biblioteca Municipal do Porto, que conservava no acervo e na atitude a
lembrança de um Herculano, de um Rocha Peixoto, de um Martins Sarmento ou de
um Sampaio (Bruno), este último educador do próprio Teixeira Rego, que
fisicamente acabara por se parecer com seu Mestre. Já era o Casais daquela altura
e daquela longa cabeça que o Brasil veio a conhecer, mas quase ficava oculto
pelas pilhas de livros que requisitava de cada vez e que lia com voracidade e
velocidade, muito antes de terem aparecido os métodos americanos de correr num
segundo as páginas pares e adivinhar por elas as páginas ímpares; que lia,
entendia e digeria em alimentação própria, sempre com um belo jeito de não ter grandes
notas, como que a reservar-se para dar a sua medida na grande e difícil vida
que o esperava.”.
Sendo que, logo de seguida,
Agostinho da Silva assinala uma diferença de percursos entre os dois: “Nisto
nos dividíamos, eu e Casais. O indo-europeu e mau conselheiro político — embora
fosse a República a deusa de Teixeira Rego —, talvez, por outro lado andasse eu
muito sob a influência de Goethe, coisa de que me curei depois, e prezasse
sobre tudo a Ordem, com muita impaciência perante as fraquezas e os
compromissos dos políticos e as injustiças que a cada momento via praticadas, o
que já não era muito goetheano; o nosso poeta e crítico temia principalmente a
ditadura que se aproximava e que, apesar de tudo, era apenas militar, quando o
que realmente ameaçava o País era o obscurantismo coimbrão e o mesquinho
espírito do quintal das couves. Quando tudo se decidiu, fiquei eu com a tropa,
ele com a Constituição. Menos de um ano depois, entrei na Seara Nova, e tive o gosto de ser demitido do serviço público ainda
antes de Casais Monteiro; onde iria o Goethe!/ Com Espanha, França e outras
aventuras, perdi de vista Casais, que entrara na Presença, andava ensinando e fazia política (…).”.
Já no Brasil – para onde
Agostinho da Silva partiu em meados da década de quarenta e Adolfo Casais
Monteiro uma década mais tarde –, recorda Agostinho a presença de Casais na
Universidade da Bahia: “Casais chegara para ensinar na Faculdade de Filosofia,
na Cadeira de Hélio Simões, e na Escola de Teatro da Martim Gonçalves viera eu
propor a Edgard Santos que se fundasse aquele Centro de Estudos Afro-Orientais
que iniciou a política africana do Brasil e que talvez tivesse feito o mesmo
com o Oriente — se trabalhou com o Japão e os Árabes – se o Presidente Jânio
[Quadros], que tão bem entendeu o Centro, não tivesse, por outro lado, deixado
de reconduzir o Reitor no cargo de que jamais deveria ter sido apeado. Em 59,
porém, só o Reitor me acompanhou na ousadia e praticamente se trabalhou a ocultas
da Universidade, que talvez derrubasse o Centro se o tivesse sabido a
funcionar; o escritório era no subterrâneo da Reitoria e, para disfarçar a
minha presença, inventaram-se na Escola de Teatro aulas de filosofia, não sendo
esta a última vez em que havia de ensinar o que não sei; coisa muito útil,
porque se aprende muito estudando com aluno.”.
E acrescenta, de forma
particularmente impressiva: “Aí aprendi ainda a conhecer a generosidade humana
de Casais, o seu entusiasmo por poder ajudar os escritores locais, o seu gosto
de relações, a real identificação com que no Dois de Julho acompanhava, com as
autoridades e o povo, o cortejo cívico dos Caboclos, muito admirado — mas não
tinha de quê – de que um catedrático português, por esse tempo em Salvador,
considerasse a festa como ofensiva para os seus brios de patriota dilecto do
regime, não das Musas. A todos, alunos ou não alunos, animava e ajudava Casais,
empresa em que naturalmente, como sempre sucede, gastava às vezes óptima cera
com péssimos defuntos. Quando vinha a desilusão, que muito o feria, ou ficava
dois ou três dias de papo para o ar, estendido na cama, meditando nas
injustiças do mundo, e assim o encontrou Jorge de Sena, que tanto admirava
Casais, quando em 59 desembarcou no Brasil (…)./ Depois o vi cansar-se de tanto
folclore bahiano (…), enquanto abalava para o Sul, a buscar seu jornal, ou
Faculdade ou editor (…) naquele exílio que era, simultaneamente, forçado e de
gosto; não suportaria Portugal e lhe era difícil viver sem Portugal. Entre os
contrários balançava, sem que tivesse chegado a alcançar que se unem as várias
geometrias naquela que não tem dimensão alguma.”.
Reencontraram-se depois em
Santa Catarina, como recorda ainda Agostinho da Silva: “e aí deu uma bela lição
num Círculo de Filosofia que se tinha inventado naquele Desterro, sob a asa
protectora de Henrique Fontes, o duro velho, e de Jorge Lacerda, aquele que os
deuses, por o amarem, levaram jovem. Mas onde o vi pela última vez foi no
aeroporto do Rio, de viagem para São Paulo e Araraquara, onde se lhe metera na
cabeça que me devia levar para a banca de seu doutoramento ou concurso, não
sei mais. Ia, no seu jeito, com entusiasmo e com resignação; colegas e alunos
lhe agradavam totalmente, tinha, naquele interior, todos os meios de trabalho
de que podia precisar, ficava perto de São Paulo, onde lhe estavam amigos,
livros, vida viva, podia passar suas férias no Rio, no apartamento junto ao
mar; o problema, porém, é que era homem de serra, e monge também de certo modo,
e que Portugal lhe faltava (…). Não era homem para ter a felicidade, que não é,
de resto, dos mais altos valores, nem para que a Paz o tomasse, que essa sim, é
valor (…). De algum momento para diante se tornou a sua vida, apesar de todo o
entusiasmo pela literatura (…), um caminhar lento e fatal para a morte (…).”.
E assim termina, Agostinho da
Silva, esta sua eloquente e comovente evocação: “tão longe o via já, tão
separado do que era realmente vida, que não lamentei muito que nos não tivéssemos
encontrado durante o período em que leccionámos na América, ele em Wisconsin,
onde, ao que parece, se sentiu muito bem, apesar do frio, eu em Nova York, onde
recebi, por meus alunos, muita boa lição de humanidade excelente. Há quem morra
antes de ter vivido e quem viva depois de ter morrido; houve em Casais as duas
coisas: não creio que tivesse estado na América plenamente vivo; e estou
seguro de que viverá mais e mais à medida que Portugal se despoje de seus
falsos ouropéis de poderoso Estado e renasça no espírito que o fez grande antes
do absolutismo real, do capitalismo italiano e alemão e da opressão religiosa;
isto é: na liberdade republicana, numa austera solidariedade económica e na
inteira fantasia de pensar Deus, ou de O não pensar; mais precisamente, de O
pensar e de, simultaneamente, O não pensar”. Eis, em suma, o retrato que
Agostinho da Silva nos dá de Adolfo Casais Monteiro: o de alguém que, após o
exílio, se foi sentindo cada vez mais um expatriado. Neste caso em inteiro
reverso com o percurso de vida de Agostinho da Silva: que só após o exílio, e
muito particularmente no Brasil, nesse Brasil que ele tanto amou – e idealizou
–, encontrou de facto a sua Pátria.
[1] Ver, a
esse respeito, a nossa obra: Perspectivas
sobre Agostinho da Silva, Lisboa, Zéfiro, 2008, p. 62.
Sem comentários:
Enviar um comentário