Se a “Saudade” é algo
que, a priori, afecta por igual todos
os humanos – dado que os afecta ontologicamente –, sem que isso signifique que
ela se constitua como uma mera afecção humana, designadamente enquanto mera
“memória”, ela (a “Saudade”), ao contrário do que alguns insistem em pensar,
não é algo que traduza uma qualquer fixação pelo passado – eis o que aqui
procuraremos defender, em diálogo com algumas figuras da filosofia portuguesa
(em particular, José Marinho).
Quem assim pensa
confunde, desde logo, origem e princípio, pois se, de facto, o
horizonte último da “Saudade” fosse a origem,
então sim, essa acusação seria pertinente. Acontece que o horizonte último da
“Saudade” não é a origem mas sim o princípio, ou seja, o que está para
aquém da origem, nessa medida, o que
está para além de todo o tempo.
Essa acusação segundo a
qual o “Saudosismo” se constitui como um “passadismo” é, aliás, geralmente
estendida ao “Sebastianismo”. Eis o caso de Álvaro Ribeiro. Se, em abono do
“Saudosismo”, nos diz que a “Saudade” é um “sentimento que não se projecta no
passado histórico, mas no passado mítico”, já, quanto ao “Sebastianismo”, a sua
atitude é bem menos abonatória, na medida em que, como refere Elísio Gala, “ao
invés de um D. Sebastião – que lhe sugere a memória da queda –, preconizará a
esperança num vindouro Infante de
Sagres, que lhe sugere a memória da ascensão”.
José Marinho, ao invés,
afirma a “correspondência simbólica” de D. Sebastião e do Infante das
Descobertas, dado que, alegadamente, “o sebastianismo não tem menor significado
e valor nos quatro últimos séculos do que a conquista e depois a aventura dos
descobrimentos teve para os anteriores” – assim defendendo a perspectiva de,
entre outros, Sampaio Bruno, sobretudo exposta na sua célebre obra O Encoberto, na qual, como nos
expressamente nos diz, “mostra que no sebastianismo um alto e divino sentido
perdura”.
José Marinho, aliás, numa carta datada de 1929, dirigida a José Régio, de quem foi muito próximo, chegou a confessar “ter em mente uma ‘Teoria do Messianismo’ em que queria retomar o problema do ‘Encoberto’ que o Bruno me pre-plagiou”. Essa obra, que depois se veio a chamar Nova Interpretação do Sebastianismo, nunca se chegou, porém, a completar. Ainda assim, do que dela chegou até nós, é possível concluir que, com a sua Nova Interpretação do Sebastianismo, José Marinho procurou sobretudo, como ele próprio escreveu na sua introdução à obra, “uma antropologia renovada, ou seja, uma nova visão compreensiva do homem, dos seus caminhos e dos seus fins”.
E isto porque, no seu
entender, D. Sebastião, a própria “Ilha do Encoberto”, simboliza, sobretudo, o
nosso “ser autêntico”, o próprio “espírito” – nas suas lapidares palavras, “o
espírito não é, no homem, um ser que se acrescenta ao ser, mas sim a maneira
como o ser do homem eminentemente é”. Daí que pelo “regresso de D. Sebastião”
não se simbolize senão o regresso do homem ao seu “ser autêntico”, no seu
“trânsito do viver caótico ao viver harmonioso”, na sua “passagem do reino
ilusório da necessidade ao da liberdade”. Daí, de resto, todo o sentido da
“viagem”, em José Marinho, em particular, na sua Teoria do Ser da Verdade: é por ela que seremos o que na verdade
somos…
A própria filosofia constitui-se para o autor da Nova Interpretação do Sebastianismo como
um caminho – como o “caminho fora do claro ver meridiano”, como o “caminho da
sombra” –, como uma viagem – como a “viagem que o amor da verdade determina no
homem que se não quer iludir”, como a “viagem entre o Nada e a plenitude”, como
a “grande viagem do espírito”. Ainda nas palavras do próprio autor da Verdade, Condição e Destino no pensamento
português contemporâneo, é essa a “viagem autêntica”, “a viagem em
profundidade, a viagem do espírito”: “...a viagem autêntica é a viagem em
profundidade, a viagem do espírito, o proceder, o seguir do espírito para a própria
intimidade e para o ser íntimo. Não é a viagem com que se apreende e forma o
exterior, mas o interior.”.
E por isso definiu ainda, José Marinho, a sua Teoria do Ser e da Verdade como essa “longa viagem, mas viagem insituada”, como essa “imensa ou intérmina viagem”, como essa “subtil viagem, não apenas da vida inteira mas de cada instante do viver”, como essa “mais insólita viagem”, “na qual nasce o próprio viajante”, como essa “simbólica viagem pelas quase desertas regiões onde não há estradas, nem sequer veredas abertas, que de novo se não cerrem na densa floresta do ser atrás do solitário viandante”, como essa “viagem pelo mar imenso do ser que se não sente nem se vê, nem é já e ainda não para nenhum ser”, como essa “viagem entre o espírito que tudo cinde e tudo une, entre todo o demoníaco e todo o divino”. Como essa viagem, em suma, da Saudade.
2 comentários:
Belo!
RSC
Excelente reflexão, Renato Epifânio.
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