É absolutamente
extraordinária a cadeia de reacções espoletada pela morte de norte-americano
George Floyd, no final de Maio. Decerto, a escala dessa cadeia deve-se também
ao particular contexto pandémico em que vivemos. Com tanta gente desempregada
e/ou saturada de confinamentos, aquela morte escancarou a porta para a explosão
de uma raiva recalcada por muito tempo. Para mais, sabe-se que a comunidade
afro-americana tem sido a mais afectada por esta pandemia.
Dada a magnitude
dessa erupção, não foram surpreendentes as réplicas que se têm sentido em todo
o mundo ocidental, desde logo na Europa. Em Portugal, o episódio de
vandalização da estátua do Padre António Vieira, na primeira quinzena de Junho,
foi o “clique” definitivo para que todo o debate sobre o colonialismo, o
esclavagismo e o racismo também irrompesse, pujantemente, entre nós.
De entre os
muitos textos entretanto publicados, permitam-nos que destaque um, pela
positiva: “O fim do luso-tropicalismo?”, de José Pedro Zúquete (Público, 24.06.2020). Isto apesar de
algumas reservas, de forma e de fundo, a algumas das suas teses, que iremos
aqui enunciar, sobretudo pela equivalência conceptual, a nosso ver equívoca,
que o autor estabelece entre “luso-tropicalismo” e “lusofonia”: «Antes
falava-se em luso-tropicalismo, agora fala-se em lusofonia. Mas a matriz dos
dois é a mesma: são nomes diferentes para o mesmo nacionalismo cultural que,
ainda hoje, é a ideologia oficial do Estado português».
Mas comecemos
pelo princípio – nas palavras de JPZ: «A primeira geração de políticos do
pós-25 de Abril dedicou-se de alma e coração a exaltar o “destino” europeu de
Portugal. E fê-lo como nunca tinha sido feito ao longo da história. Em 1976,
num discurso no Conselho da Europa, José Medeiros Ferreira foi lapidar: com o
25 de Abril “Portugal volta por fim oficialmente à convivência com a Europa”.
Esse era “um acto” que exprimia “a consciência do nosso destino histórico”.
Era, nas palavras do então ministro dos Negócios Estrangeiros, “o regresso de
Portugal às suas raízes continentais”».
Ou seja, dando
aqui razão a JPZ: a Revolução de Abril pretendeu estabelecer um corte
conceptual, mas não apenas – esse é o ponto – relativamente à concepção de
Portugal do Estado Novo. O diferendo não é de todo esse, ou, mais exactamente,
é muito mais amplo do que esse. É por isso que, ainda hoje, existem pessoas
(algumas das quais conhecemos bem) que, tendo sido oposicionistas ao Estado
Novo, por, entre outras razões, não ter antecipado a descolonização, nem por
isso consideram que a concepção exclusivamente europeia de Portugal seja a
melhor. Sem que isso signifique, desde já se esclareça esse outro equívoco
recorrente, que a “aposta lusófona” seja incompatível com a “aposta europeia”.
Bem pelo contrário: a nosso ver, são perfeitamente complementares.
Foi também por
isso que algumas posições mais extremadas do PREC (Processo Revolucionário em
Curso), no pós 25 de Abril, não tiveram desenvolvimento real entre nós. Apesar
de ter havido quem clamasse que “Camões também era colonialista”, não houve de
facto (como ainda hoje não há), nenhuma maioria que sancionasse esse rompimento
com a nossa história que agora alguns, aproveitando esta aparente oportunidade,
pretendem de novo promover. Os portugueses, em geral, não têm nenhum mal-estar
com a nossa história. Reconhecem, decerto, que os Descobrimentos tiveram, à luz
dos valores de hoje, aspectos censuráveis. Mas não estão dispostos, e bem, a
fazer tábua rasa de todo o nosso passado.
Porque, em
última instância, é disso mesmo que se trata. E por isso não espanta que, nos
Estados Unidos da América, as estátuas de Cristóvão Colombo tenham sido também
visadas. A mensagem é óbvia: “Toda a história dos EUA é um erro”. Ainda que
seja igualmente uma mensagem inconsequente – pois, como se poderia realmente
remendar esse erro? Devolvendo toda a população “branca” à Europa? E toda a
população “negra” a África? Obviamente, não é possível esse “recomeço” da
história. Não é possível nos EUA nem em nenhum outro país do mundo. Em
Portugal, isso significaria o quê? Querer recuar aos tempos prévios à “invasão
dos romanos”?!... Mas deixemo-nos de perguntas ociosas e regressemos à tese
principal de JPZ: a da equivalência conceptual que o autor estabelece entre
“luso-tropicalismo” e “lusofonia”.
A nosso ver, com
efeito, há aqui um equívoco de base: é que “luso-tropicalismo” foi afirmado
para perpetuar o status quo colonial.
Ou seja, corresponde a um paradigma definitivamente ultrapassado pela história
(chamemos-lhe aqui o “paradigma do 24 de Abril”). Sobre isso, qualquer
discussão é igualmente ociosa: mesmo entre aqueles que consideram que o
processo de descolonização foi “exemplar” (leia-se: “exemplarmente mau”), não
há ninguém que seriamente acredite que seja possível qualquer espécie de
regresso ao passado. Independentemente dos méritos ou deméritos da teoria
luso-tropicalista e, sobretudo, da distância que sempre houve entre a teoria e
prática – por mais que, apesar de tudo, nunca tenhamos construído um regime
como o do “Apartheid” sul-africano –, a descolonização ocorreu e é
irreversível.
Tendo sido esse
o “paradigma do 24 de Abril” e tendo nós já aqui visto o “paradigma do 25 de Abril”
- a concepção exclusivamente europeia de Portugal –, resta então falar sobre o
conceito de Lusofonia, que aqui iremos considerar como o “paradigma do 26 de
Abril”. Ainda que, naturalmente, com diversas nuances, este tem-se afirmado
progressivamente nas últimas décadas à luz de algumas premissas – no essencial,
três: mal ou bem, a descolonização ocorreu e é irreversível; não obstante, os
países independentes que partilham esse mesma língua, cultura e história
(entretanto agregados na CPLP: Comunidades dos Países de Língua Portuguesa)
podem e devem cooperar (muito mais), em benefício próprio; essa cooperação não
é exclusivista, ou seja, não se faz necessariamente por exclusão de outras: no
caso de Portugal, conforme o já aqui referido, em relação à União Europeia; no
caso do Brasil, em relação ao MERCOSUL; no caso de Timor-Leste, em relação à
ASEAN; no caso dos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa), em
relação a outras plataformas regionais.
Dito isto, há
uma observação de JPZ que me parece muito certeira e lúcida. Há, de facto,
“novas gerações – da Esquerda e da Direita” que não se reconhecem, de todo,
neste horizonte. À Esquerda, porque consideram que todo o processo de expansão
marítima foi um erro absoluto – pelo que, ainda que não defendam (em público) a
destruição do Padrão dos Descobrimentos, renegam e estigmatizam a Lusofonia,
vista como o resultado de uma história em que não se reconhecem, como o fruto
(ainda que longínquo) de um “pecado original”. À Direita, porque, como muito bem
escreve JPZ, «sentem que o imaginário da lusofonia impede Portugal – num
contexto de transformação multicultural e multiétnica, tal como noutros países
da Europa Ocidental – de defender a sua identidade primária, continental, e
europeia». Aqui, realmente, há uma grande coincidência entre os extremos
(esquerdo e direito): ainda que por razões muito diversas, ambos se afirmam
contra a Lusofonia.
Reconhecendo que esses extremos, tanto à Esquerda como
à Direita, estão em progressão, não somos, porém, tão pessimistas quanto JPZ.
Desde logo porque se esses extremos estão particularmente em progressão nas
novas gerações, estão ainda muito longe de representar, por inteiro, as novas
gerações. Há ainda, a nosso ver, mesmo entre as novas gerações, uma maioria
substancial para quem a relação mais próxima com as outras “gentes lusófonas”
não é traumática ou problemática. Essa maioria substancial continua a
preocupar-se genuinamente (e não por uma qualquer consciência de culpa) com as
“gentes lusófonas” (apenas um exemplo: quem, no plano internacional, continua a
preocupar-se genuinamente com a situação presente na Guiné-Bissau, como,
outrora, aconteceu com Timor-Leste?). Mais: essa maioria substancial sabe
perfeitamente que a Lusofonia a consolidar-se neste novo século terá múltiplas
raízes – decerto, uma raiz também portuguesa, mas a par de outras. Não quer,
pois, impor externamente, já fora de prazo, uma qualquer “portugalidade”. Neste
novo século, o paradigma só pode ser outro: realmente pós-colonial.
1 comentário:
Muito bem.
Abraço.
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