Se houve alguém com um
percurso particularmente sinuoso no universo galeguista do século XX, essa
alguém foi, provavelmente mais do que qualquer outro, Vicente Risco, como aqui
começaremos, de forma breve, por recordar.
Nascido a 1 de Outubro de
1884, em Ourense, onde foi amigo de infância de Ramón
Otero Pedrayo, Vicente Risco veio a licenciar-se em Direito na
Universidade de Santiago de Compostela, em 1906, tendo ainda estudado em
Madrid, onde foi aluno de Ortega y Gasset.
Em
1917, fundou, com Arturo Noguerol Buján, a revista La Centuria, uma das antecedentes mais evidentes da Revista Nós. Ainda em 1917, ingressa, pela mão
de Antón Losada Diéguez, nas Irmandades
da Fala. De forma dir-se-ia meteórica, Vicente Risco tornou-se, nos anos
seguintes, na grande figura de referência do nacionalismo galego – em
particular, com a publicação, em 1920, da obra Teoria do nacionalismo galego.
Paralelamente,
porém, Vicente Risco apoia num primeiro momento a Ditadura de Primo de Rivera.
Já na década de trinta, funda, com Ramón Otero Pedrayo, o Partido Nazonalista
Republicán de Ourense. Em Outubro de 1931, é o primeiro subscritor de um
manifesto galego pró-católico.
Nesse
manifesto, antecipa-se em grande medida o seu gradual afastamento da Frente
Republicana e a sua contrapolar aproximação ao franquismo. Como corolário
simbólico desse percurso, em Agosto de 1936, Vicente Risco participa, como Director
da Escola Normal de Ourense, na reposição solene da cruz católica nas escolas,
organizada pelas autoridades franquistas. Entre a militância católica e a
militância republicana galeguista, a primeira parece ter vencido nessa sua
“guerra civil” interior.
Em
1938, Vicente Risco começa a colaborar no órgão franquista La Región, o que foi visto como mais uma “traição” por muitos dos
seus ex-camaradas galeguistas, quase todos eles entretanto exilados. Ainda
assim, manteve algumas amizades no universo galeguista: como as de Otero
Pedrayo e Francisco Fernández del Riego. Por sua influência, Vicente Risco
redige um estudo de etnografia para a Historia
de Galicia, dirigida por Otero Pedrayo, a par de outros trabalhos.
Tendo-se
jubilado em meados dos anos 50, Vicente Risco continuou a publicar trabalhos de
etnografia na imprensa galega, paixão que, apesar de todas as vicissitudes
políticas, nunca abandonou, mesmo quando começou a usar mais regularmente o
castelhano como a sua língua de escrita. Em 1961, publicou ainda a obra Léria, uma antologia de textos
anteriores à guerra civil espanhola. Provavelmente mais do que qualquer outro,
Vicente Risco terá lamentado a erupção dessa guerra. Se não fosse ela, o
destino de Vicente Risco teria sido, decerto, muito diferente. Ousamos supor
que terá pensado isso mesmo, ao falecer, a 30 de Abril de 1963, na sua cidade
natal.
*
Obra
de evidente cariz sistemático e doutrinário, a Teoria do nacionalismo galego, publicada em 1920, começa por
dissertar sobre o “nacionalismo galego”, que, segundo Vicente Risco, deve ser
entendido com “a doutrina que enforma o movimento de reivindicação da
personalidade da Galiza frente à sorção [no original está: ‘sorbencia’] do
centralismo espanhol”, sendo que Vicente Risco equipara expressamente o
nacionalismo galego, ou “galeguismo”, ao nacionalismo basco e ao nacionalismo
catalão, ainda que ressalve: “O nosso nacionalismo, para ser algo, tem que ser
um galeguismo, e não um euskarismo ou
um catalanismo traduzidos na nossa
fala” (p. 3).
Salvaguardado
que, na sua visão, o nacionalismo galego não é, ou não deve ser, “separatista”,
Vicente Risco descreve depois o processo de “desgalização” da Galiza: como “perda
das nossas tradições, dos nossos costumes, da nossa fala, da nossa liberdade”,
“cheia de vergonha de si mesma (p. 5). Face a isso, expressamente propõe-se
“trabalhar na reconstituição espiritual, social e económica da Galiza” (p. 6) –
e saliente-se aqui a hierarquia, decerto não arbitrária: primeiro o plano
espiritual, depois o plano social (ou político) e económico. Daí acrescentar
que “precisamos de autonomia nas três ordens”.
Por
“reconstituição espiritual” deve entender-se, nas palavras do próprio Vicente
Risco, “a criação e conservação da civilização galega na Fala, na Arte e nos
Costumes”; por “reconstituição política”, a “autonomia integral” e o
“acomodamento do Direito às leis, às necessidades e aos costumes jurídicos da
Galiza”; por “reconstituição económica”, “o levar a nossa terra à máxima
produção” e a uma “justa e equitativa distribuição da riqueza”, o que só
acontecerá quando todos os galegos tiverem – citamos do original – “pan,
vestido, casa y-aforros” (pp. 6-7). Eis, em suma, o horizonte de pensamento –
e, não menos importante, de acção – que Vicente Risco propõe a todos os galegos
nesta sua obra. Na visão de Vicente Risco, o pensamento leva necessariamente à
acção.
Depois, no segundo capítulo da
obra, Vicente Risco oferece-nos uma panorâmica das “lutas nacionalistas” do seu
tempo (pp. 7-8), dissertando ainda sobre os fenómenos do “federalismo” (pp.
8-9), do “centralismo” (pp. 9-11), centrando-se depois no “nacionalismo em
Espanha” (pp. 11-13) e na “ineficácia do Estado espanhol” (p. 13-14). Tudo isto
para, de novo, fazer a apologia do “nacionalismo na Galiza”, a partir de uma
reconstituição das suas raízes históricas (pp. 14-16). Apesar dessas raízes
histórias, faltava, na visão de Vicente Risco, uma “doutrina integral do
nacionalismo”. Daí toda a importância histórica das “Irmandades da Fala”, como
expressamente refere (p. 16), desde logo, como é sabido, na reabilitação do
galego como língua principal da Galiza.
Disserta
depois, Vicente Risco, sobre “a nacionalidade galega”, abordando os seguintes
tópicos: “o que é uma nação” (pp. 16-18); “o chão galego” (p. 18); “a gente
galega” (pp. 18-19); “a fala galega” (pp. 19-20); “a sociedade galega” (pp.
20-22); “a mentalidade galega” (p. 22); “o sentimento galego” (p. 23); “os
interesses e os problemas da Galiza” (pp. 23-25). No capítulo seguinte, “A
ética do nacionalismo galego”, fala-nos dos “direitos da Galiza como região
espanhola” (p. 26), dos “direitos da Galiza como nação” (p. 27-28), do “dever
da Galiza como nação” (pp. 28-29) e da “vontade nacionalista” (pp. 29-30). O
capítulo seguinte, “A teleologia do nacionalismo galego”, será porventura o
mais original. Nele, após falar sobre “a crise do europeísmo” (pp. 30-31), faz
a apologia do “atlantismo” (pp. 31-32), que contrapõe à “civilização mediterrânica”,
estabelecendo ainda uma ponte com as “nações célticas” (pp. 32), distinguindo,
nessa esteira, “três civilizações” (pp. 32-33).
Assim,
segundo o próprio Vicente Risco, temos a “civilização mediterrânica”, como a
“civilização da Inteligência”; a oriental e a norte-americana, como a
“civilização da Vontade”; finalmente, “a de Portugal e da Galiza é a
civilização da Memória…Morrinha e Saudade”. A esse respeito, convoca
expressamente o nome de Leonardo Coimbra, considerando, porém, “o saudosismo e o
criacionismo português ainda lírico demais”, e acrescentando: “A missão
histórica da Galiza e de Portugal é de opor ao mediterranismo, o atlantismo,
fórmula da Era futura” (p. 33). A esse respeito, disserta ainda sobre o
“símbolo do Atlântida” (pp. 33-34), alegado “símbolo da nossa civilização
céltica” (p. 34). Por fim, no capítulo sobre “A pragmática do nacionalismo
galego”, fala-nos sobre “As Irmandades da Fala” (pp. 34-35), “O programa de
Lugo” (pp. 35-40) e as “Conclusões aprovadas em Santiago” (pp. 40-44).
Um século depois,
obviamente, muitas destas “Conclusões” estão irreversivelmente datadas, tal
como acontece com a sua obra-irmã portuguesa – falamos, claro está, da Arte de ser português (1915), de
Teixeira de Pascoaes, de quem Vicente Risco foi muito próximo. Na
correspondência entre ambos recentemente editada (Teixeira de Pascoaes, Vicente Risco: Epistolário, Allariz, Fundação Vicente Risco, 2012), podemos ler
expressões como estas: “Meu querido Confrade” (20/2/20), “Meu querido amigo”
(10/3/20), “Meu querido amigo e confrade” (20/3/20), “Meu muito estimado
confrade” (12/5/20), “Meu querido confrade e amigo, irmão na saudade e na
esperança” (21/5/20), “Meu muito querido camarada” (12/11/20), “Meu querido
camarada” (12/12/20), “Meu querido irmão” (10/7/21); “Querido irmão” (21/8/21),
“Queridíssimo irmão” (18/3/26)”. Algo porém de inteiramente actual nas duas
obras se mantém – desde logo, a prevalência da acção no plano espiritual sobre
os planos político, social e económico. Um séculos depois, importa, cada vez
mais, ter isso em conta.
* Para o VII Colóquio Luso-Galaico sobre a Saudade, entretanto adiado para Dezembro:
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