No ano da morte de Pinharanda
Gomes (16.07.1939-27.07.2019), pareceu-nos particularmente pertinente recuperar
um texto seu: falamos, em concreto, do seu Prefácio a uma edição de uma obra de
José de Arriaga, ou, mais exactamente, de um excerto de uma obra sua: História da Revolução Portuguesa de 1820.
O excerto corresponde ao Capítulo III do Livro II do Volume I da obra,
intitulado “Movimento Intelectual”, e publicado, em separado, sob o título de “A
filosofia portuguesa: 1720-182” (Guimarães Editores, 1980). Fazemo-lo aqui em
dupla Homenagem: a Pinharanda Gomes e ao próprio José de Arriaga, ilustre irmão
de Manuel de Arriaga, o primeiro Presidente eleito da República Portuguesa.
Nesse seu Prefácio, começa
Pinharanda Gomes por assinalar o quanto o consulado pombalino “bipolarizou o
país e decidiu, ou cindiu em duas metades, a tradição portuguesa”, levando à
“coexistência de duas nações no mesmo estado – os portugueses velhos e os
portugueses novos”, sendo que, “em 1820, a dualidade estabelecia-se entre
‘católicos’ e ‘mações’” (p. 7). Ainda nas suas palavras: “a revolução de 1820,
longe de contribuir para a harmonização do contexto, cavou, por falta de uma
convergência opinativa substante, o fosso pré-existente” (p. 8).
Depois, após fazer uma breve
apresentação de José de Arriaga (pp. 8-10), salientando o quão a sua obra se
norteia pelos “valores do pensamento” e não pela mera “ideologia”, faz o elogio
da obra História da Revolução Portuguesa
de 1820: “Constitui um estudo sobre as bases da revolução liberal, numa
visão planetária, que interroga, em plano simultâneo, os elementos sociais, a
conjuntura política, o confronto dos interesses e, sobretudo, a polémica das
ideias, tudo isto cifrado no entendimento de que o país estava dividido, e
decadente, desde o reinado de D. Manuel I” (p. 10). Essa “visão planetária”
decorre da sua percepção de que o que aconteceu no Portugal da época se explica
também, senão sobretudo, pelas “pressões culturais exteriores”.
Em particular, pelas “duas
pressões culturais exteriores: a inglesa, que prevaleceu até 1820, e a
francesa, que se infiltrou depois de 1820, porque os emigrantes políticos
vieram, no regresso, ‘cheios de ideias francesas’./ França e Inglaterra são,
para o historiador, duas matrizes, ou duas plataformas de recurso, para as
tendências filosóficas e culturais portuguesas. A França é o espaço da
abstracção, da fina razão, do mecanicismo cartesiano. A Inglaterra é o trilho
do realismo biológico, da teoria apostada à efectividade da prática, do
empirismo orgânico. Por isso que, em obediência aos trâmites do apogeu
português, a Inglaterra respondia melhor aos projectos do pensamento português,
ou, conforme Arriaga prefere dizer, da ‘filosofia portuguesa’” (p. 11).
Eis, ainda segundo Pinharanda
Gomes, o natural destino de “um pensamento que deviera invertebrado e, logo,
submisso, a todas as modernidades que viessem de longe”, acrescentando: “A
metafísica alemã, o racionalismo francês e o realismo inglês disputaram, em
múltiplas instâncias, obras e datas, a predominância, mas, no parecer de
Arriaga, a linha que assinalou o ideário de 1820 foi a inglesa, com prejuízo da
francesa”. Em abono da sua tese, refere Arriaga diversos factores,
“designadamente a influência maçónica e a evidente anglofilia daqueles
portugueses que, no Brasil, ou de lá, com passagem por Inglaterra, abriam a
mente à filosofia e, sobretudo, à ciência e à economia política inglesas” (p.
12).
Como ressalva, porém: “Com
tudo isso, Arriaga não pretende deduzir que a revolução de 1820 tivesse sido um
acontecimento pensado de fora. Pelo contrário, ele admite que a revolução de
1820 foi ‘completa’, ‘toda inspirada em o sentimento nacional’, e, como
demonstra, na tendência que, na época, predominava na filosofia portuguesa’.
Ainda mais: entende que o movimento de 1820 foi posteriormente desviado por
acasos posteriores, que ‘desgraçaram o reino”. Daí, ainda segundo Pinharanda
Gomes, “a consciência, patente na obra de Arriaga, de que há um abismo entre a
revolução pensada e a revolução feita, entre a revolução que a aristocracia
pensa e a revolução que, na sequência, a democracia faz” (p. 13).
Eis, em suma, o ponto de
convergência final entre José de Arriaga e Pinharanda Gomes, que, como se sabe,
tinham pontos de partida bem diversos: José de Arriaga inscreve-se
perfeitamente na linhagem vencedora da Revolução Liberal de 1820; Pinharanda
Gomes não tanto, ou não de todo. E, porém, este seu Prefácio é bem ilustrativo
do verdadeiro espírito liberal que sempre o animou. Não tanto por “testemunhar
o devido respeito ao pensamento do Autor [José de Arriaga]” (p. 15), mas por
muito mais do que isso: por procurar compreendê-lo. Toda a obra de Pinharanda
Gomes é, de resto, um excelente exemplo dessa incessante procura de compreensão
de autores à partida muito distantes da sua matriz, sem com isso comprometer a
sua matriz, o seu ponto de partida. E que é igualmente, a nosso ver, um dos
traços mais distintivos da Tradição da Filosofia Portuguesa.
A esse respeito, partilhamos
aqui, para encerrar, uma memória recente: em Junho do corrente ano, no Brasil,
em Juiz de Fora, no âmbito do XIII Colóquio Antero de Quental, alguém se
destacou pela negativa ao fazer, mais do que uma comunicação, um manifesto
anti-marxista. Ora, nós que até na ocasião já nos tínhamos assumido como não
marxistas, sentimo-nos na obrigação de contrariar esse manifesto, defendendo
que o marxismo não poderia (ou, pelo menos, não deveria) ser contrariado
naqueles termos. Julgamos, passe a presunção, que quer Pinharanda Gomes quer
José de Arriaga, ambos igualmente não marxistas, teriam assumido exactamente a
mesma posição se lá tivessem estado. Em abono do espírito liberal da Filosofia
Portuguesa.
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