Se houve um pensador que, no século XX, procurou, mais do que
qualquer outro, afirmar a diferença qualitativa da filosofia portuguesa, esse
pensador foi Álvaro Ribeiro.
Para isso, fez contrastar o mais possível a nossa filosofia com
todas as outras filosofias, sobretudo com a filosofia alemã, denunciando a sua
tão grande quanto nefasta influência – tão grande que, nas suas palavras, “a
filosofia alemã, depois de Hegel, domina a cultura mundial”, tão nefasta
porquanto, ainda nas suas palavras, “em nome da verdade antropológica, a
filosofia alemã decaiu depois na negação da verdade cosmológica e da verdade
teológica, no desespero do tecnicismo, do sociologismo e do ateísmo”.
Para reforçar ainda mais esse contraste, recorreu Álvaro Ribeiro à
simetria simbólica que faz corresponder o povo português ao elemento “água” e o
povo germânico ao elemento “terra” – simetria a que, refira-se, também José
Marinho recorreu, designadamente ao caracterizar, de modo expresso, o alemão,
ou “alamano”, como “homem da terra”, e os portugueses como “homens dos portos”.
Para além de Álvaro Ribeiro e de José Marinho, outros pensadores
também nos caracterizaram desta forma.
Entre os diversos exemplos que poderíamos dar, atente-se nesta
passagem de uma obra de José Enes (Linguagem
e Ser): “País litoral, a nossa função histórica foi a de ser porto. Porto
de saída, mas também de chegada. Extremamente marginais, não poderíamos deixar
de ser um espaço de passagem, que é o
sentido de porto e porta, para sair e para entrar. Por isso
mesmo, não alcançámos a concentração criadora de uma cultura, original no
conteúdo e nas formas. A nossa cultura resultou da deposição dos elementos
importados e exportados. Nela se estratificam, interpenetram e integram,
mediante a língua, as influências vindas, principalmente, do lado donde se
partia para fora da Europa. A grande filosofia, a grande ciência e a grande
técnica não encontraram em nós o seu berço. Mas, em contrapartida e por este
mesmo facto, não tiveram origem em nós os grandes males do mundo nem o extremo
perigo que hoje o ameaça e nos atinge também a nós.”.
Sobretudo na sua obra A Arte
de Filosofar, enfatiza, Álvaro Ribeiro, essa diferença qualitativa da
filosofia portuguesa – daí, a título de exemplo, estas suas palavras:
“Meditando sobre a ambição dos povos germânicos e eslavos, que pretendem
estabelecer e dominar o caminho
continental que liga o extremo Ocidente com o Oriente extremo, saibamos ver
a superioridade do caminho marítimo
que devemos às tradições conservadas pelos navegadores portugueses.”; “A
persistência do barco na literatura portuguesa é sinal de uma originalidade que
em tudo se opõe, como a inversão das naves, à figura da catedral,
característica de outras culturas mais presas à terra, ou à pedra.”; “Se o
simbolismo da terra é inferior ao simbolismo da água, se o simbolismo pagão da
agricultura é inferior ao simbolismo cristão da pescaria, se o simbolismo do
túmulo é inferior ao simbolismo da nave, a navegação portuguesa, utilizando os
elementos superiores da física, correspondia à tradição de mais fluído e subtil
simbolismo. A Terra é uma nave, e as viagens em demanda do Oriente pelo
Ocidente visaram a promessa cristã de reintegração do Homem e da Natureza no
plano primitivo ou original.”.
Na esteira de Álvaro Ribeiro, outros pensadores radicalizaram
ainda mais esse contraste entre o pensamento português e o alemão. Eis o caso,
paradigmático, de Orlando Vitorino.
Num seu texto intitulado “Portugal e o Futuro”, começa por afirmar
que “os dois grandes pensadores da nossa época” são Leonardo Coimbra e
Heidegger – um “homem do centro da Europa, talvez centro da terra”, o outro
“homem da periferia da Eurásia, homem da finisterra”. Como nos diz ainda, ambos
denunciam “o império da técnica no vazio da existência”. Enquanto que, no
entanto, Heidegger denuncia de forma alegadamente passiva esse estado de “desolação do mundo”, refugiando-se numa
trágica esperança de que algum “Deus” nos venha salvar, Leonardo, ao invés,
denuncia-o activamente, demonstrando “a necessária vitória do homem de sempre sobre o mundo desolado
do império do igualitarismo e da tecnologia”. Nessa medida, conclui: “…o mundo
é, hoje, dramaticamente, e será no futuro, talvez sem tragédia, o que forem a
Alemanha e Portugal. Todo o futuro se decidirá no conflito entre o pensamento
português e o pensamento alemão, entre Leonardo e Heidegger.”.
* Para o Colóquio “Orlando
Vitorino: Obra e Pensamento” (17-18 de Outubro de
2019, Palácio da Independência): caso pretenda participar neste Colóquio, pode
enviar-nos até final de Junho uma proposta de Comunicação, com título e resumo.
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