Recentemente, participámos em dois eventos que, à partida, nada de
comum teriam entre si, mas que, de forma por inteiro inesperada, se tornaram
quase o espelho, ainda que invertido, um do outro: o Colóquio “António Sérgio,
meio século depois” (Universidade do Porto) e o II Congresso Internacional
"Diálogos Interculturais Portugal-China" (Universidade de Aveiro).
Assim, no primeiro, foram naturalmente abordadas diversas facetas
da vida e obra de António Sérgio, sendo que em algumas das intervenções se
salientou a sua faceta de activista político contra o Estado Novo: como foi
recordado, António Sérgio foi, inclusivamente, um dos grandes mentores da
candidatura presidencial de Humberto Delgado, em 1958.
Já no segundo evento, não se falou, obviamente, de António Sérgio.
Mas falou-se bastante do regime chinês, partindo, porém, de premissas bem
diversas. Enquanto que a oposição de António Sérgio ao Estado Novo foi
justificada pela sua ânsia de liberdade, proclamadamente incompatível com
qualquer regime de partido único, na avaliação que foi feita do regime chinês
essa foi uma questão que passou para segundo plano, como se fosse, quase, uma
futilidade.
Em algumas intervenções, defendeu-se até, de forma expressa, que o
regime chinês era, no fundo, um regime “meritocrático”, ou seja, que escolhia
os melhores para a sua liderança, sem correr o risco de, através de eleições
livres, permitir que os “não melhores” fossem eleitos. Chegou-se até a dar o
exemplo da “República” platónica – onde o líder era, por definição, o mais
sábio, o “Rei-Filósofo”.
Não pudemos deixar de sorrir interiormente, perante tanto
contorcionismo argumentativo: alguns daqueles que, em nome da liberdade, não
aceitavam qualquer espécie de tolerância perante um regime como o Estado Novo,
mostravam-se sumamente tolerantes perante um regime (igualmente de partido
único) como o chinês, não percebendo que, dessa forma, estavam a caucionar
muitos dos argumentos dos defensores do Estado Novo, para quem este era também,
de facto, um regime “meritocrático”, liderado pelo melhor de todos: no caso,
António de Oliveira Salazar.
Pela nossa parte, como tivemos a oportunidade de dizer na ocasião,
estamos dispostos a conceder que um país do tamanho da China (como outros: por
exemplo, a Rússia) só é governável através de um regime altamente centralizado:
na democracia, o tamanho conta. Mas, em nome da coerência, não podemos aceitar
que os mesmos argumentos deixem de valer quando muda o contexto (ou a
conveniência ideológica). Na China, como também salientámos, há presos
políticos e estes não podem ser, simplesmente, eclipsados. Em nome da mais
elementar coerência, essa coisa chata…
1 comentário:
Como sempre nos habituou o nosso amigo Renato é particularmente claro e coerente e, por isso, certeiro, "nestas coisas chatas" que muitos gostariam que lhes não fossem lembradas.
Abraço
Carlos Aurélio
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