Dentre as cisões que animaram a nossa história cultural, a cisão Renascença Portuguesa-Seara Nova é,
decerto, uma das mais fracturantes. Perante ela, parece fácil tomar posição.
Tanto mais porque, historicamente, foi a Seara
Nova que parece ter vencido, pelo menos nesse plano retórico onde muitas
vezes, senão sempre, se joga o destino das histórias culturais. Segundo essa
mesma retórica, temos, de um lado – da Renascença
Portuguesa –, um movimento saudosista, logo passadista, logo reaccionário,
que, alegadamente, pretendia enclausurar Portugal em si próprio (partindo desta
perspectiva, mais ou menos expressamente enunciada, inevitável é depois
falar-se do “esgotado movimento da Renascença Portuguesa e da revista A Águia”; como visão contrapolar a esta,
refira-se, nomeadamente, a de José Marinho, para quem “com a ‘Renascença
Portuguesa’, e com tudo quanto se lhe segue em afinidade espiritual ou crítico
contraste, surge a mais funda transmutação na vida espiritual portuguesa desde
o Renascimento.”); do outro lado – da Seara
Nova –, temos um movimento progressista, modernizador, que, ao invés,
pretendia abrir Portugal à Europa, a todo o mundo…
Como quase todas as visões caricaturais, também esta é tão
substancialmente falsa quanto acidentalmente verdadeira. É verdade que a Renascença Portuguesa – na perspectiva
de Pascoaes, em particular – sobrepunha, como veremos, os paradigmas endógenos
aos exógenos. Isso não faz dele, contudo, a
priori, menos progressista. O que aqui há são diversas concepções de
progresso, e mesmo de modernidade. Se, para Teixeira de Pascoaes, “o fim da Renascença Lusitana é combater as
influências contrárias ao nosso carácter étnico, inimigas da nossa autonomia
espiritual e provocar, por todos os meios de que se serve a inteligência
humana, o aparecimento de novas forças morais orientadoras e educadoras do
povo, que sejam essencialmente lusitanas”,
para Raul Proença, por exemplo, o paradigma é de facto outro. Ouçamos, para o
atestar, estas suas palavras: “O nosso espírito, a nossa maneira de encarar os
problemas, o nosso modo de os resolver, as ideias fundamentais que formamos da
vida e do mundo, tudo isso que é o que importa numa sociedade, porque é o que
nela há de garantias para uma sociedade melhor, são coisas anacrónicas, sem
relação nenhuma com o meio europeu em que nos integramos fisicamente. É como se
fossemos uma pústula no meio da Europa, onde circula ininterruptamente sangue
sempre novo e sempre vivificante. Como estremunhados pensamos ideias que não
são para o nosso tempo, continuamos num sonho distante, estranhos à actividade,
estranhos ao pensamento moderno”.
De facto,
estamos aqui perante dois paradigmas: de um lado, pugnava-se por um progresso a
partir de dentro; do outro, pugnava-se por uma adequação de Portugal ao que
aparentava ser o exemplo máximo de modernidade: a Europa. Esta divergência – de
ordem cultural, filosófica e até ideológica – foi, de resto, assumida, de uma
forma tanto mais nobre porquanto não envolveu qualquer desqualificação
ético-moral da “outra parte”. Foi esse, por exemplo, o caso de Raul Proença,
que se referiu aos seus “oponentes” do movimento da Renascença Portuguesa como “criaturas de alto valor, de nobre senso
moral, credoras da nossa admiração e do nosso respeito”. O que é de enaltecer,
pois que, entre nós, o mais habitual é as divergências de ordem cultural,
filosófica e até ideológica redundarem em desqualificações ético-morais… Neste
caso, isso não aconteceu, até porque a divergência era de facto clara: entre,
por exemplo, alguém como António Sérgio, que “não se pensava sob a categoria do
nacional”, e alguém como Teixeira de Pascoaes, que pensou a Pátria como “um ser
vivo superior aos indivíduos que o constituem, marcando, além e acima deles,
uma nova Individualidade”, era claramente difícil, senão impossível, haver um
caminho comum…
Um século depois, porém, é mais do que tempo para superar essa
clivagem. Não temos que escolher entre passado e futuro – como se o futuro se
pudesse construir contra o passado – ou entre a nossa dimensão europeia e a
nossa dimensão atlântica e lusófona. Do que se trata, como sempre, é de
compatibilizar: a nossa dimensão europeia e a nossa dimensão atlântica e
lusófona; o passado, o presente e o futuro. Portugal sempre foi e sempre será
um país europeu – de resto, o país europeu com as fronteiras mais antigas. Não
precisamos por isso de, provincianamente, provar, a quem quer que seja, a nossa
dimensão europeia. Historicamente, porém, Portugal tornou-se um país atlântico,
projectando-se à escala global. Daí essa nossa outra dimensão… Se houve alguém
que, no Portugal do século XX, soube compatibilizar essas duas dimensões foi
Agostinho da Silva. Tendo-se formado, após a sua passagem pela Faculdade de
Letras do Porto, na Seara Nova e sido
muito próximo de António Sérgio, na década de 30, cerca de uma década e meia
depois, já no Brasil – para onde parte em 1944 –, vai, contudo, Agostinho da
Silva reencontrar a nossa singularidade histórico-cultural, tão cara à Renascença Portuguesa. A partir do
Brasil, fê-lo, porém, não já numa visão estritamente nacional nem, muito menos,
nacionalista, mas numa perspectiva lusofonamente global. No século XXI, eis, a
nosso ver, a perspectiva que mais importa cumprirmos.
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