I
Datada de
Dezembro de 1957, Carta ao futuro
(Lisboa, Bertrand, 1981, 3ª) é um extenso texto dedicado a um “amigo”
indeterminado, escrito, segundo o próprio Vergílio Ferreira, “pelo prazer de
comunicar” – recordemos aqui o início da missiva: “Meu amigo: Escrevo-te para
daqui a um século, cinco séculos, para daqui a mil anos… É quase certo que esta
carta te não chegará às mãos ou que, chegando, a não lerás. Pouco importa.
Escrevo pelo prazer de comunicar” (p. 9).
Não será
tanto assim – ao definir, logo de seguida, a epistolografia como “a forma de
comunicação mais directa que suporta uma larga margem de silêncio” e, mais
ainda, como “a forma mais concreta de diálogo que não anula inteiramente o
monólogo”, compreende-se que o interlocutor desta carta é, em última instância,
o próprio Vergílio Ferreira. Daí o sentimento de solidão que ressalta das
primeiras páginas desta carta, onde o autor descreve, num tom marcadamente melancólico,
a sua vivência da cidade de Évora (pp. 10-13).
Sente, porém,
que “há outra coisa à minha [sua]
espera” (p. 15), a “hora da sua verdade”, em última instância, o antecipado
momento da sua própria morte – ainda nas suas palavras: “Toda a vida que se
cumpre esgota a comunicabilidade onde quer que se anuncie. Assim, a hora da sua
verdade não é uma hora de comício, mas de solidão final (…). Ah, estar só é
terrível (…). Por isso me ocorre muitas vezes que para um homem saber que voz
última lhe fala, deveria ao menos ver-se
flagrantemente à hora de uma morte abandonada, numa ilha deserta e perdida.
Pascal: On mourra seul… Sim. Mas a mentira
conhece todos os caminhos, mesmo os que nós ignoramos.” (pp. 16-17).
E continua:
“Todo o homem morre só; mas nem todos o sabem. Recuperar em cada acto a solidão
original de uma morte verdadeira é o profundo acto humano de quem se não quiser
perder, se quem deseja eliminar essa zona que se interpõe entre a mentira de
tudo e a verdade iluminada de nós próprios” (p. 18). Acrescenta que “a
realidade imediata reconforta, nem que seja a realidade de uma pedra que nos
atirem”, mas, no fundo, sabe bem que essa é outra mentira, que se contrapõe ao
que “não tem face nem nome”, à “forma oca de um limiar indistinto, pura
anunciação de presença, obscuro alarme de uma aparição” (p. 19).
E continua
ainda, terminando assim, neste tom, a primeira parte desta sua Carta: “Num
longe imaginado, passam os ventos em linha, massas de névoa deslizam sobre a
terra abandonada, uma voz de espaço ressoa à minha atenção suspensa. O que é
certo e imediato, o que me vem à boca e tem nome, o que é exacto e mensurável,
refugia-se na timidez da penumbra e do silêncio, porque a voz obscura que me
fala transcende o passado e o futuro, vibra verticalmente desde as minhas
raízes até aos limites do universo, aí onde a lembrança é só pura expectativa
despojada do seu contorno, é só pura interrogação. Nesta hora absoluta, conheço
a vertigem da infinitude, o halo mais distante da minha presença no mundo…”
(pp. 19-20).
II
Nas restantes
cinco partes da sua Carta ao Futuro,
mantém, Vergílio Ferreira, este seu tom tão caracteristicamente existencialista,
dissertando, de forma sucessiva, sobre a “angústia” e a “alegria final nos
limites da nossa condição” (II, p. 34), sobre a alegada “morte de Deus” (III,
pp. 40 e segs.), sobre “os limites da condição humana” (IV, pp. 59 e segs.),
sobre a “redenção pela arte” (V, pp. 81 e segs.) e, finalmente, sobre o
conforto do “sentimento estético”: “Porque é dentro da emotividade que o mundo
tem sentido, e a verdade humana, e a orientação fundamental de tudo o que nos
orienta. Porque o sentimento estético é uma comunicação original com a
essencialidade da vida (…)” (VI, p. 97).
Ao
sinalizarmos aqui esse “tom tão marcadamente existencialista”, estamos a fazer
um mero juízo de facto – não de valor –, para nós tão evidente e pacífico que
nem sequer nos daremos ao trabalho de recordar as posições assumidas pelo
próprio. Sim, sabemos que ele se sentia mais próximo de alguns existencialistas
– como Jaspers – do que de outros – como Sartre –, mas, passados já mais de
cinquenta anos, essas pequenas querelas são para nós quase que inteiramente
irrelevantes. O que para nós aqui mais importa é apurar o que, nos tempos de
hoje, se mantém de realmente actual do pensamento de Vergílio Ferreira.
A nosso ver,
há desde logo algo que se mantém realmente actual, mais do que isso, algo que
nos tempos de hoje é particularmente pertinente. E não falamos aqui de nenhum
sentimento de “angústia”, nem sequer de “drama”, muito menos de “náusea”. E
também não nos estamos aqui a referir ao mais do que estafado tópico da “morte
de Deus”. Para além de toda essa “ganga existencialista” – que nos seja
permitida a expressão –, há, reiteramo-lo, algo que se mantém realmente actual,
mais do que isso, algo que nos tempos de hoje é particularmente pertinente e,
por isso, operativo. Falamos da sua paixão pelo humano, da sua aposta pelo
humanismo, a nosso ver, com efeito, algo que nos tempos de hoje é
particularmente pertinente e, por isso, operativo.
III
Uma das
marcas maiores do pensamento filosófico contemporâneo, em particular no
Ocidente, tem sido a erosão do conceito de humanidade. Para algum pensamento
dito “pós-moderno”, isso chega mesmo a ser um expresso desiderato – fazendo,
pois, do conceito de humanidade um alvo a abater.
No universo
mais alargado do discurso mediático, se não chega a haver esse expresso
desiderato, nota-se, pelo menos, essa erosão do conceito de humanidade, como se
já ninguém sentisse a motivação necessária para o defender.
Razões para
tal, há decerto muitas. De forma expressa ou tácita, o conceito de humanidade
foi-se tornando cada vez mais responsável, ou co-responsável, por um modelo
civilizacional que também cada vez menos gente defende – o dito modelo
civilizacional europeu e ocidental, alegadamente responsável por todos os males
no mundo, nos mais diversos planos: social, económico, político e ecológico.
No plano
político, de resto, é particularmente significativa a emergência de partidos
ditos animalistas, que, mais do que defenderem os “direitos dos animais”, se
caracterizam por um discurso assumidamente “anti-especista”, leia-se,
anti-espécie humana. Como se, de facto, não existisse, ou não devesse existir,
a espécie humana, como se, de facto, não existisse, ou não devesse existir, o
conceito de humanidade.
Nalguns
casos, chega-se mesmo a suspirar por um mundo sem humanidade, como se o planeta
Terra fosse realmente o paraíso celeste antes da emergência do humano. Essa
visão angelical da natureza – substantivamente falsa e grosseira – articula-se,
amiúde, com uma rejeição, mais ou menos assumida, de tudo aquilo que
caracteriza a emergência do humano: a linguagem, o pensamento, a própria
cultura. Como se a cultura fosse algo de “contra-natura”, algo que só se pode
afirmar contra a natureza. Como se o conceito de humanidade fosse, por si só,
algo de negativo, senão mesmo um sinónimo de destruição.
Impõe-se, por
tudo isso, neste século XXI, um pensamento assumidamente neo-humanista. Um
pensamento que, fazendo a devida crítica de todos os males de que
historicamente fomos responsáveis enquanto humanos – não só contra a natureza,
mas, desde logo, contra nós próprios –, não chegue ao extremo de negar o
próprio conceito de humanidade. Será isso impossível? Como diria Agostinho da
Silva: “só há homem, quando se faz o impossível; o possível todos os bichos
fazem”.
A tarefa,
porém, não é fácil: para tanto, importa desconstruir toda uma mundividência que
se desdobra entre um discurso mediático cada vez mais hegemónico e algum
discurso filosófico aparentemente muito sofisticado, mas que, no essencial, se
funda no mesmo equívoco. Tudo isto em prol de uma visão cosmológica em que o
humano terá de ter, de novo, o seu lugar. Ao contrário do que alguns pretendem,
uma visão holística do mundo não é necessariamente anti-humanista, sendo que,
contrapolarmente, importa não confundir humanismo com antropocentrismo. A nosso
ver, no século XXI, esse é um dos maiores equívocos que, filosoficamente,
importa desfazer.
Intróito
da Conferência a apresentar no Colóquio Internacional “Escrever e Pensar ou O
Apelo Invencível da Arte. Centenário do Nascimento de Vergílio Ferreira”.
Organização: Instituto de Filosofia da Universidade do Porto e Câmara Municipal
de Gouveia, 18-21 de Maio de 2016.
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