No
primeiro número da Revista NOVA ÁGUIA, presenteou-nos Ariano Suassuna com um
breve mas resplandecente depoimento, onde nos começa por dizer: “Eu tenho uma
alegria enorme em falar sobre Agostinho da Silva, pessoa que admirava e admiro
muito. Eu o conheci na Baía, creio que em 1961, e ele me seduziu imediatamente.
Vi logo que tinha nele um irmão, um irmão mais velho…E fiquei ainda mais
encantado quando ele me disse que tinha chegado à conclusão de que o V Império,
profetizado em Portugal, tinha como grande esperança de realização o próprio
Brasil. Esta era, na altura, a tese fundamental dele”.
Centrar-nos-emos
aqui nessa visão do Brasil enquanto “grande esperança de realização” do Quinto
Império – que, com efeito, emerge em várias obras de Agostinho da Silva, desde
logo na sua Reflexão à margem da
literatura portuguesa, datada de 1957 – onde nos deixou a seguinte
exortação: “…que tome o Brasil inteiramente sobre si, como parte de seu destino
histórico, a tarefa de, guardando o que Portugal teve de melhor e não pôde
plenamente realizar e juntando-lhe todos os outros elementos universais que entraram
em sua grande síntese, oferecer ao mundo um modelo de vida em que se entrelaçam
numa perfeita harmonia os fundamentais impulsos humanos de produzir beleza, de
amar os homens e de louvar a Deus (…).”. Eis, em suma, a visão que nos
reiterará em outros textos seus, como iremos, de passagem, referir.
O
primeiro desses textos intitula-se “Considerando o Quinto Império” e foi
publicado no periódico Tempo Presente,
em 1960. Nele, faz, uma vez mais, Agostinho da Silva, a retrospectiva da
história de Portugal, desde logo, dos dois nossos maiores erros históricos: o
de termos “abandonado” a Galiza e o de termos querido “conservar” Ceuta,
sacrificando, para tal, o Infante D. Fernando. Eis, reitera-nos, o que nos fez
desviar dos mares, dos “mares sobre que flutua o Espírito”, paras as terras, do
ser para o ter… Neste texto, aparece o Brasil enquanto possibilidade de
correcção desse desvio, de “começar de novo, de começar o recomeço: nunca mais
abandonando noivas [como a Galiza]; nunca mais querendo terras em lugar de
mares, nunca mais excluindo religiões”.
O
segundo desses textos que aqui brevemente referimos intitula-se “Presença de
Portugal” e foi publicado, à parte, enquanto opúsculo, em 1962. Nele, narra
Agostinho da Silva a sua experiência na fundação da Universidade de Brasília,
em particular, do Centro Brasileiro de Estudos Portugueses, que aí criou, com o
intuito, expressamente afirmado, de reatar, no Brasil, o que, em Portugal,
“ficou interrompido nos séculos XV e XVI” – nas suas palavras, “aquela
possibilidade de se compreender toda a gente nunca deixando de ser o que se é,
ponto importante porque isso fez a grandeza de Portugal no século XV, em grande
parte do século XVI e em tanto momento isolado da sua História”.
O
terceiro desses textos intitula-se “Ensaio para uma Teoria do Brasil” e foi
publicado no periódico Espiral, em
1965. Se, no anterior, o Brasil era apenas, ou, pelo menos, sobretudo,
perspectivado enquanto reatamento, historicamente interrompido, de Portugal,
neste o Brasil é perspectivado em si próprio, fazendo Agostinho da Silva a
apologia das suas insuspeitas capacidades, nomeadamente, como refere, de forma
eloquente, da sua “capacidade de [vir a] liderar o futuro humano, quando se
desembaraçar de tudo quanto lhe foi útil na educação europeia e exercer, com o
esplendor e a vigorosa força de criação que pode demonstrar, as suas
capacidades de simpatia humana, de imaginação artística, de sincretismo
religioso, de calma aceitação do destino, de inteligência psicológica, de
ironia, de apetência de viver, de sentido da contemplação e do tempo”.
O quarto
desses textos intitula-se “Perspectivas” e resulta da comunicação apresentada
em 31 de Maio de 1968 à reunião conjunta da Academia Internacional da Cultura
Portuguesa e do Conselho Geral da União das Comunidades da Cultura Portuguesa”.
Nele, na esteira dos textos anteriores, chega inclusivamente, Agostinho da
Silva, a prefigurar a dissolução de Portugal na República Federativa do Brasil,
o que, no na sua perspectiva, “não significaria que Portugal estava alienando a
sua independência, mas que estava ajudando o Brasil, que é o melhor de si
mesmo, a alargar-se no mundo, dando-lhe um desembarque na Europa”. Este gesto,
como salientava na altura, “poderia levar a Guiné, Moçambique e Angola a
ligarem-se ao Brasil; poderia levar [ainda] a uma revisão do estatuto de Goa e
a encontrar solução para o problema de Macau e Timor”.
O quinto
e último desses textos, sem título, foi publicado no periódico Notícia, em 1971. Nele, reitera-nos,
Agostinho, a sua peculiar visão do Brasil – nas suas palavras: “…se ainda
estivéssemos em tempo de impérios se poderia, desde agora mesmo, ver Brasília
como a futura capital do mundo; como não estamos, [que] a vejamos apenas como o
símbolo daquela Paz que talvez Portugal pudesse ter estabelecido a partir do
século XVI se não tivesse cedido a Maquiavel, apesar de tanto protesto de seus
melhores homens, e não tivesse acreditado em que os meios podem ser de natureza
diferente dos fins que se querem atingir: a Paz falhou porque, para a ela
chegarmos, nos confiámos iludidos aos demónios da guerra. Que oxalá no Brasil,
exorcismados [sic], morram.”. Uma vez
mais, defende pois Agostinho que Portugal se cumprirá no Brasil. Ainda nas suas
palavras, “o Brasil será o Portugal que não se realizou”. De tal forma que,
como escreveu enfim, “o Brasil é Portugal, não irmão ou filho de Portugal, mas
Portugal mesmo”. Eis, em suma, uma certa visão do Brasil, que Agostinho da
Silva e Ariano Suassuna, no essencial, comungavam.
Ao longo de toda a sua vida,
com efeito, defendeu Ariano Suassuna uma visão do mundo em que as diferenças
linguísticas e culturas poderiam e deveriam ser afirmadas – como ele próprio
afirmou, numa entrevista concedida a Luiz Zanin
Oricchio, publicada no Jornal “O Estado de São Paulo”, no dia 12 de Julho de
1997: "A verdadeira universalidade respeita as singularidades locais.
Todos entram com sua parte, compondo a vasta sinfonia da cultura. Ela é feita
de contrastes, que não são contrários, mas complementares. Do jeito como está
proposta, a globalização é apenas a prevalência de uma cultura única, a
norte-americana, sobre todas as outras. Só não vê esse facto quem não
quer".
Daí
toda a sua obra, em particular no conhecido Movimento Armorial, onde procurou,
sem preconceitos, valorizar a cultura popular, no que esta tinha de mais
genuíno, enquanto expressão maior do próprio povo brasileiro – em assumida
contra-corrente a quase a toda a chamada “arte contemporânea”, que, ao invés,
tende, de forma consciente ou inconsciente, a fazer tábua rasa de todas essas diferenças
linguísticas e culturais, afirmando um paradigma apenas artificialmente
“universal”, como se pudesse haver uma arte linguística e culturalmente neutra.
De resto, não é por acaso que,
no âmbito do Movimento Armorial, a cultura popular que mais se valorizou foi a
cultura nordestina, por ser a mais genuína, a menos contaminada por esse
paradigma apenas artificialmente “universal”. Na mesma referida entrevista, à
pergunta se “o Nordeste teria melhores condições
para resistir a uma possível pasteurização cultural”, respondeu: “É um
paradoxo, mas talvez seja mais fácil engolir uma região desenvolvida, como São
Paulo ou Rio [de Janeiro], do que o Nordeste. Aqui a resistência é mais forte,
talvez exactamente porque a região seja comercialmente mais fraca. Marx cometia
um erro grave ao dizer que os países mais potentes do ponto de vista económico
produziriam uma arte mais rica. Não há relação directa entre as duas coisas…”.
Dando de novo o salto para
Portugal, perguntamo-nos se o nosso país, no quadro europeu, não poderia ter um
papel análogo ao que Ariano Suassuna reconhece ao Nordeste brasileiro, no
quadro do nosso país irmão. Sem que isso implique condenar-nos ao
subdesenvolvimento económico e social, que esse menor desenvolvimento possa,
pelo menos, ser motivo de análoga resistência a essa “pasteurização cultural”. Em Portugal, como se sabe, foi também isso que
Agostinho da Silva tentou, precavendo-nos, mesmo no auge da euforia europeísta
– falamos dos anos oitenta – contra a dissolução das diferenças
linguísticas e culturais. Já vinte anos após o seu falecimento, eis uma tarefa
que não está ainda cumprida. Uma tarefa que nunca se cumprirá, plenamente.
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