O insigne jurista Paulo
Ferreira da Cunha é decerto, nos dias de hoje, um dos melhores exemplos da
validade dessa asserção. O seu mérito jurídico decorre desde logo de um inequívoco
saber consolidado nessa área. Mas decorre também, senão sobretudo, de uma
sageza que se estende a muitas outras áreas. Paulo Ferreira da Cunha é, para
usarmos uma outra expressão clássica, “um homem com mundo”.
Uma amostra dessa sageza tem
sido a sua colaboração na NOVA ÁGUIA:
Revista de Cultura para o século XXI. Os diversos ensaios publicados na
nossa Revista são, com efeito, como aqui verificaremos, um excelso exemplo de
uma mundividência que, em momento algum, se confina apenas à área jurídica.
Comecemos pelo primeiro
deles, “Reflexões sobre a Decadência”, publicado no primeiro número da Revista
(1º semestre de 2008), onde podemos ler o seguinte: “Certo é que, apesar dos
programas escolares, os jovens chegam às universidades com a mais gritante e
escandalosa incultura – e também, desde logo, incultura histórica. A culpa não
será só destes ou só daqueles. O problema é que hoje os professores (do mais
baixo ao mais alto nível) se sentem pressionados a passar toda a gente, sob pena
de terem muitos problemas.”.
E “o resultado” – como, logo
de seguida, refere – “é a incompetência generalizada em que vivemos.
Generalizada, mas letrada”. E o que se pode extrair, deste tão breve quanto
incisiva observação? Desde logo, a valorização da cultura histórica, em todas
as áreas. Depois, um tão impiedoso quanto certeiro diagnóstico do estado do
nosso ensino, em todos os níveis. Por fim, uma não menos certeira refutação de
um dos “mitos” mais difundidos dos nossos tempos: o de que a geração mais jovem
é “mais qualificada de sempre”. Como, se tão assaz inculta?!
Daqui também se extrai, a
nosso ver, o perfil “politicamente incorrecto” de Paulo Ferreira da Cunha, algo
que maximamente valorizamos, por considerarmos que essa “peste intelectual” –
expressão nossa – é uma das razões maiores da nossa decadência (não
especificamente portuguesa). Cada vez mais, por toda a Europa, por todo o
Ocidente, por todo o Mundo, as pessoas em geral – intelectuais incluídos, e por
vezes à cabeça… – limitam-se a ecoar (e, assim, a caucionar) absolutas
inanidades que não resistem ao menor exame crítico. O “mito” de que a actual
geração mais jovem é “mais qualificada de sempre” é, a esse respeito, um bom
exemplo. Não há dia em que mil e uma vozes o não ecoe, acriticamente.
Num outro ensaio, “Fernando Pessoa, hermenêutica jurídica e
retórica”, publicado no sétimo número da Revista (1º semestre de 2011), podemos
apreender um outro traço de carácter de Paulo Ferreira da Cunha, igualmente
pouco comum nos tempos de hoje: a sua auto-ironia. É que, neste seu ensaio,
Paulo Ferreira da Cunha pretende, com evidente simpatia, “explicar o relativo desprezo de Fernando Pessoa
pelas coisas jurídicas, numa vasta e variada obra que não está de modo algum
isolada do político e do social”. E, nas entrelinhas, quase que podemos ler:
“Bem te compreendemos, Fernando, bem te compreendemos…”.
No ensaio seguinte, “Dalila,
Mestre Ecléctica”, publicado no décimo número da Revista (2º semestre de 2012),
debruça-se, Paulo Ferreira da Cunha, sobre alguém, Dalila Pereira da Costa, com
ainda maior “desprezo pelas coisas jurídicas” (e pedagógicas…), qualificando-a
até como “Mestre”: “Dalila era Mestre, desenvolveu um ensino oral, que nela
fluía, como é comum nos grandes mestres, de forma natural e sem o aborrecido e
intimidatório didatismo de alguns, que são pseudomestres de pose e profissão.
Na realidade, são apenas professores, e maus. Apesar de o presente desnorte
pedagógico-didáctico os elevar e entronizar, enquanto torna a vida do mestre
professor totalmente desesperante – ou seja, sem esperança. E isso mata o
Mestre./ No futuro, certamente, os Mestres não serão professores (…)”.
No seu mais extenso ensaio publicado na Revista, “Cidadania
privada e cidadania pública: diálogos com Tomás Moro, Erasmo e Agustina”
(décimo quinto número, 1º semestre de 2015), Paulo Ferreira da Cunha prova, uma
vez mais, a sua mestria ecléctica – pois só ele poderia, à partida, relacionar
três figuras tão diferentes entre si como Tomás Moro, Erasmo e Agustina
Bessa-Luís… E o mesmo se diga a propósito do seu tão breve quanto luminoso
testemunho sobre João Bigotte Chorão (vigésimo quarto número, 2º semestre de
2019), outro dos seus Mestres, onde começou por escrever: “Os nossos tempos
(‘nosso enlouquecido século’) são maus tempos para João Bigotte Chorão e são
bons tempos para João Bigotte Chorão./ São maus tempos por culpa deles mesmos e
são bons tempos apesar de si próprios (…)”.
Concluindo, enfim, desta forma, em círculo perfeito: “O nosso
tempo é simultaneamente propício e avesso a João Bigotte Chorão. Nele assoma
mesmo um barbarismo, um caceteirismo (as bengaladas camilianas e queirozianas
seriam muito chiques) a que até alguns surpreendentemente acabam por
sacrificar. Faz a este tempo muita falta a serenidade, a moderação, a elegância
e a ironia deste oitocentista atento e interventivo, com quem os séculos XX e
princípios do XXI tiveram o privilégio de contar./ Mas o maior problema, aquele
que temos que enfrentar com coragem (que podemos pedir emprestada ao nosso
autor, a quem não faltava), é um outro: em que medida essa obra vivíssima e
interpelante vai ter leitores no futuro. Será que as novas gerações são de
leitores? E de leitores que se interessem por este tipo de temas, e de estilo?
Muitos escamoteiam o problema, embandeirando em arco de fácil optimismo (…)”.
Também em círculo perfeito, diremos que o nosso tempo é
simultaneamente propício e avesso a Paulo Ferreira da Cunha, agradecendo-lhe aqui
a valiosa colaboração na NOVA ÁGUIA, que
entretanto prosseguiu em 2020/21, e terminando, em tom mais esperançoso, com a
transcrição parcial de um dos seus vários poemas publicados na Revista (décimo
oitavo número, 2º semestre de 2016): “(…) Felizes os que laboram
alheios às querelas do Mundo porque caminharão na senda da Paz./ Felizes os que combatem o bom
combate, porque a sua Força irradiará Justiça./ Felizes os pacientes
e os tolerantes, cuja quotidiana serenidade é exemplo e escudo./ Felizes os que olham
sinceramente nos olhos e falam palavras de Verdade, porque deles
é o Reino./ Felizes os que espalham a Verdade, a
Beleza e o Bem, sem nada esperar em troca, porque neles mora a nossa
Esperança”. Também por isso, gratos, Paulo.
Sem comentários:
Enviar um comentário