Há um vício tipicamente
filosófico que consiste em procurar um sentido para tudo, mesmo quando não há
sentido algum. É o que acontece, por exemplo, com alguns críticos de arte
contemporânea. Perante o “vazio”, nalguns casos assumido pelos próprios
criadores, conseguem sempre encontrar grandes sentidos ocultos, num delírio
sobre-interpretativo sem fim. Se esse é um vício que importa combater, pior
ainda é, porém, o vício anti-filosófico de não procurar compreender, condenando
à partida... Vem a esta breve provocação/ reflexão preambular a propósito do
pensamento do galego Andrés Torres Queiruga, que, precisamente, na sua obra
procura compreender, não condenando à partida o que, enquanto teólogo, teria,
dir-se-ia, todo o direito a condenar: o ateísmo. Atentemos, por exemplo, na sua
obra “Creio Em Deus Pai” (Paulus
Editora, 2014), desde logo nesta passagem: “O Ateísmo está unido, sem dúvida, a uma grande crise da cultura
ocidental. Crise de que a religião não está ausente. Há até quem pretenda ver
no abandono de Deus a causa quase única e total da crise do Ocidente. Visão
claramente exagerada, porque para o surgimento do mundo moderno confluem, com
toda a evidência, muitos e muito profundos factores. Isto não significa que se
deva chegar à posição contrária: a de vulgarizar o facto religioso, como se
Deus fosse um factor maior ou menos adjectivo que, simplesmente, se evaporou
com o progresso da história ou o avanço da cultura. É óbvio que entre o todo e
o nada está a evidência de que se trata de um factor muito sério a ser levado
em conta, porque, para o bem e para o mal, o religioso influi de modo mais profundo
na configuração da pessoa e da sociedade humana.” (p. 13).
Muito para além de pensar o ateísmo enquanto expressão da modernidade,
Torres Queiruga pensa-o enquanto expressão maior do próprio cristianismo: “Não é casual que o ateísmo irreligioso
seja um fenómeno tipicamente ocidental, no âmbito preciso do cristianismo. Foi
este que o tornou possível. E o fez não por seus defeitos, mas por suas
virtudes: exactamente por suas ideias de criação e encarnação. A criação, ao
marcar a diferença radical entre Deus e o mundo, possibilitou uma progressiva e
consequente dessacralização (…). A encarnação, por sua vez, nos ensinou que
tudo tem valor positivo: a realidade mundana e o trabalho humano nela valem
também em si mesmos e possuem densidade específica. Definitivamente, o
cristianismo criou condições de possibilidade de uma concepção verdadeiramente
mundana do mundo. O homem chega a descobrir-se tão autónomo e tão dono de si
mesmo e de seu destino que até pode – confundindo os planos – acabar negando
Deus” (pp. 19-20). De tal modo
assim é que, em última instância, Torres Queiruga, reafirmando a sua condição
cristã, consegue mesmo antecipar um “terreno estritamente comum em que podemos
encontrar-nos com a busca mais profunda dos não-crentes” – atentemos, uma vez
mais, nas suas palavras: “As reflexões anteriores não serviram unicamente para
compreender melhor o ateísmo; também saiu ganhando a nossa compreensão do
cristianismo (…). Se nós, cristãos, conseguirmos demonstrar, com nossa teoria e
prática, que Deus é a máxima negação de toda a negação do homem, então se
abrirá um terreno estritamente comum em que podemos encontrar-nos com a busca
mais profunda dos não-crentes. Porque coincidimos no fundamental: a defesa do
homem e de suas possibilidades (…). A modernidade é relativamente nova, e o
grande mal-entendido histórico pelo qual, para muitos, Deus apareceu como
inimigo do homem não vai ser eterno. Pessoalmente, não renuncio a esperar que
(…) a sensibilidade moderna acabará fazendo a experiência – ou aproximando-se
mais dela – de que Deus não nega o homem, mas o afirma” (pp. 38-39).
Numa carta remetida a Álvaro
Ribeiro, datada de 5 de Maio de 1937, escreveu José Marinho o seguinte: “Cumpre
não ignorar o sentido e o valor do ateísmo. A grandeza da civilização moderna
está em permitir o desenvolvimento do ateísmo.”. Vinda de alguém como José
Marinho, que reiteradamente afirmou “Deus” como “alfa e ómega de todo o ser,
alfa e ómega de todo saber”, inclusivamente do saber filosófico, e que chegou
mesmo, de resto, a afirmar o “problema de Deus” como o “problema central da
filosofia portuguesa contemporânea”, esta afirmação parecerá, como deve ter
parecido a Álvaro Ribeiro, assaz estranha. No entanto, esse ateísmo que José
Marinho valoriza não é o ateísmo vulgar, o ateísmo a-filosófico ou “sem
filosofia”. De modo algum. O próprio Marinho reconheceu, aliás, de forma
expressa, que “sem filosofia o ateísmo facilmente degenera nas almas de pouco
anseio e ideal”.
O ateísmo que José Marinho
valoriza é, antes, um ateísmo filosófico, maximamente filosófico, a ponto de se
confundir com o próprio “movimento da filosofia”. Nas palavras de Marinho, com
efeito, “o movimento da filosofia é desabsolutizar o que não é autenticamente
absoluto”, na “negação de Deus e de todo o divino enquanto é para nós”, e assim
reconhecer “o autêntico”, e assim antecipar “o único verdadeiro”. É, aliás, por
isso, que o “movimento da filosofia” se confunde com o que José Marinho
qualifica de “ateísmo iniciático”: pois que nega, tudo nega – toda a
delimitação objectual, toda a configuração ideativa, que sobre “Deus” possamos
realizar ao intentarmos apreendê-lo – para mais profundamente poder afirmar:
“Deus”, em si próprio, na sua absoluteidade. Eis, precisamente, o processo que
Marinho descreveu em diversas passagens da sua obra.
Eis, em suma, porque valorizou
José Marinho tanto o ateísmo, tendo chegado inclusivamente a considerar que “o
autêntico ateísmo [precisamente este: o ‘ateísmo iniciático’] equivale à teologia
mística dos últimos cumes” – daí ainda o ter-nos dito que “há ateus que não
podem saber como estão perto de Deus, assim como há muitos teólogos que não
podem saber quanto dele se vão distanciando”, ou que “o sério ateu é para o
metafísico afirmativo o primeiro entre os seus irmãos”, daí ainda, enfim, a sua
referência, fugaz mas nem por isso sem significado, à “religião do além”, à
“filosofia da última cumeada”. A este respeito, atentemos ainda nestas suas
palavras, particularmente sugestivas: “Situar o absoluto fora de tudo quanto
existe, situá-lo, mais do que isso, fora de tudo quanto é. Pois o absoluto como
insubstancial, e como substante no profundo seio e para além de tudo quanto
dizemos ser, é o que nos escapa quando dizemos que é e mais profundamente
confirmamos quando lhe recusamos ser.”.
Daí ainda, de resto, a
valorização que José Marinho faz do ateísmo enquanto fenómeno histórico – a par
do antropocentrismo e do niilismo, quais vértices de um mesmo triângulo –, o
mais marcante da nossa proclamada “Modernidade”. Na medida em que – palavras
suas – “a crença em Deus degenerou, arrastando consigo o próprio Deus”, o
ateísmo contemporâneo acaba por ser – por poder ser – a via através da qual a
humanidade purificará a sua relação com “Deus”, expurgando-a da perversa lógica
antropomórfica, antropocêntrica. Eis, aliás, a “hipótese” que José Marinho
equaciona, de forma expressa, em diversas passagens da sua obra – a título de
exemplo, atentemos nestas: “Tudo se passa como se Deus preferisse ser negado a
ser minorado em qualquer forma de antropomorfismo.”; “Deus, desde sempre, não
confia na fé e no saber dos homens. Ser negado estava também nos seus
desígnios.”; “Deus está mais interessado em revelar-se e ser aceite na sua
Revelação do que em ser objecto de crença.”.
A ser assim, todo o trânsito da História não é senão o
mesmo trânsito através do qual o homem vem a apreender “Deus” da forma mais
depurada, mais próxima, “responsavelmente mais próxima”. Eis, igualmente, a
“hipótese” que Marinho equacionou – ainda nas suas palavras: “...porque se
tornou Deus o mais remoto para mim? A resposta é: para que eu me torne dele
responsavelmente mais próximo.”. Daí, em suma, a razão da advertência de José
Marinho ao seu “irmão” Álvaro Ribeiro – recordemos as suas palavras: “Cumpre
não ignorar o sentido e o valor do ateísmo. A grandeza da civilização moderna
está em permitir o desenvolvimento do ateísmo.”. Ainda que por ínvios caminhos,
ou seja, ainda que através do ateísmo, do niilismo e do antropocentrismo, “toda
a evolução do pensamento filosófico moderno – nas palavras do próprio Marinho –
nos encaminha justamente para precisar de nova maneira a essencialidade do
conhecimento filosófico, estabelecendo de nova maneira a relação entre
filosofia e ciência, filosofia e vida, conhecer e ser”. E eis aqui, neste repensar do ateísmo, o
grande ponto de convergência que encontramos entre o teólogo galego Andrés
Torres Queiruga e o filósofo português José Marinho.
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