Como era fácil de adivinhar, a
proposta da Câmara Municipal de Lisboa de criar um “Museu das Descobertas” (ou
“da Descoberta”) fez ressurgir uma série de lugares-comuns relativos à história
da colonização portuguesa, que parecem resistir a toda a crítica, por mais que
se comprove a sua falta de fundamento. De forma mais ou menos expressa,
parte-se sempre desta premissa: antes dos portugueses chegarem a África ou à
América, esses territórios eram uma espécie de paraíso terrestre, que,
obviamente, os portugueses tornaram num inferno. Nesta visão tão grosseira
quanto falsa, de um lado temos pois os portugueses (por extensão, todos os
europeus) como “ontologicamente agressores” e, do outro, os africanos e os americanos
como “ontologicamente vítimas”. Sendo que quem questiona esta visão só pode
ter, claro está, um olhar eurocêntrico.
“Impedidos” que estamos de
citar um historiador europeu, citemos então um historiador brasileiro, assumidamente
“de esquerda” e particularmente insuspeito de qualquer espécie de
“eurocentrismo”, que reencontrámos em Maio deste ano num Congresso decorrido no
Brasil, na cidade de Mariana: Paulo Margutti, autor da monumental obra
“História da Filosofia no Brasil” (São Paulo, Ed. Loyola, 2013). O que nos diz
ele de África antes da chegada dos portugueses e do alegado início do inferno da
escravatura? Literalmente, isto: “De um modo geral, os costumes dos negros
facilitavam grandemente a escravidão, uma vez que essa constituía a penalidade
imposta entre eles para diversos delitos. Além disso, os pais podiam vender os
filhos, o rei podia escravizar os seus súditos e grande parte dos membros de
uma tribo derrotada em guerra estavam submetidos ao cativeiro” (p. 191).
E quanto ao alegado paraíso
que era a América do Sul antes da chegada de Pedro Álvares Cabral? Ouçamos uma
vez mais o insigne académico brasileiro: “Cada tribo tupi vivia em guerra
permanente com os vizinhos, qualquer que fosse a sua matriz cultural. Quando
essa matriz era diferente, as lutas eram motivadas por disputas territoriais.
Quando a matriz era a mesma, as lutas eram motivadas por uma visão de mundo
culturalmente condicionada, que envolvia expedições guerreiras com o objetivo
de capturar prisioneiros para a realização de rituais antropofágicos (…). A
fama de um homem dependia de quantos inimigos já tinha capturado ou executado,
acumulando assim novos nomes. Isso está ligado à ideia de que só os corajosos
tinham acesso ao paraíso, ficando as almas dos covardes condenadas a vagar pela
terra, acompanhadas pelos demônios. Uma vida de valor caracterizava-se
fundamentalmente pela vingança obtida graças à execução dos inimigos, fosse em
combate, fosse em rituais antropofágicos” (pp. 180-181).
*
Bem sabemos que estas
evidências históricas em nada põem em causa as certezas de quem insiste que,
“de facto”, antes dos portugueses chegarem a África ou à América, esses
territórios eram uma espécie de paraíso terrestre, que, obviamente, os
portugueses tornaram num inferno. Como “certezas metafísicas”, elas são absolutamente
intangíveis a todo e qualquer argumento.
Esperamos, porém, que o futuro
“Museu das Descobertas” (ou “da Descoberta”) não seja estruturado a partir
dessa visão completamente enviesada do colonialismo e da escravatura. Caso se
queira salientar esta questão, então que se conte a história toda: quanto à
escravatura, os povos europeus não foram apenas agressores, foram também
vítimas (pois que a história da Europa foi, também ela, violenta); e os
restantes povos do mundo não foram apenas vítimas, foram também agressores.
Infelizmente, a escravatura foi uma constante na história da humanidade até há
poucos séculos, em todos os continentes, sem excepção.
Mais do que o nome do futuro
Museu, o que nos preocupa são pois os conteúdos que serão apresentados e a
forma como tais conteúdos serão apresentados. Se prevalecer essa visão
completamente enviesada do colonialismo e da escravatura, então o melhor, no
limite, é que não se faça o Museu. Assim, pelo menos, essa visão completamente
enviesada do colonialismo e da escravatura não terá a caução do Estado
Português, ainda que por via da Câmara Municipal de Lisboa.
Esperamos, ainda assim, que o
bom senso prevaleça e que o Museu se faça. Com o nome de “Museu das
Descobertas”, “da Descoberta”, ou, como preferiríamos, “da Lusofonia”. No
século XXI, este é, a nosso ver, o nome que mais sentido faz, porque é isso o
que, no século XXI, resultou de toda essa história: a Lusofonia. Por mais
controversa e traumática que continue a ser essa história, sobre o que dela
resultou não nos parece haver espaço para contestação. Mesmo aqueles que
consideram que, no essencial, a história da expansão marítima portuguesa foi
uma história de pilhagem e devastação, não podem deixar de reconhecer a difusão
da nossa língua à escala global.
Difusão que permanece e que se
acentuará, neste século XXI. Como tem sido antecipado, o número de falantes da
língua portuguesa irá continuar a crescer de forma significativa (excepto,
ironia das ironias, em Portugal). O nome de “Museu da Lusofonia” teria pois
essa vantagem: mais do que nos reenviar para o passado, projecta-nos no nosso
futuro comum. Sem escamotearmos esse passado e todos os crimes, à luz dos
valores de hoje, que então se cometeram, olhemos pois sobretudo para o futuro.
O “Museu da Lusofonia” deveria ter esse enfoque, assim promovendo, hoje (felizmente)
numa base de liberdade e de fraternidade, a relação entre todos os povos de
língua portuguesa.
Renato Epifânio
Presidente do MIL: Movimento
Internacional Lusófono
www.movimentolusofono.org
4 comentários:
Concordo, subscrevo... quase inteiramente. A ressalva refere-se a esta parte: «A escravatura foi uma constante na história da humanidade até há poucos séculos, em todos os continentes, sem excepção.» Na verdade, em países muçulmanos a escravatura continuou a ser uma constante em períodos bem mais recentes do que há poucos séculos, e até se pode questionar que continua a existir - veja-se o «mercado» na Líbia deste ano.
Acerca do Museu das Descobertas ou Descoberta
Ou da Lusofonia
Enaltecendo o passado que obrigatoriamente os portugueses devem conhecer "para compreender o presente e construir o futuro, tendo como base a afirmação de muitos portugueses me perguntarem onde fica Malaca!
Sem COMPLEXOS OU ENGENDRAR-SE MASOQUISMOS DE NEGAÇÃO OU ACUSAÇÃO RELATIVAMENTE AO PASSADO, mas vê-lo com rigor e objetividade, ter a capacidade critica para a construção do seu significado cultural, civilizacional e de solidariedade, se possa extrair novas propostas para o progresso da humanidade.
Basta contatar de perto as comunidades dispersas pelo mundo e nesse sentido ainda vivemos construindo um humanismo universalista no fim do meio milénio.
A nossa identidade assenta nos valores da cultura, da língua, da cooperação e da comunicação, derivam diretamente do "passado dos descobrimentos" e das encruzilhadas civilizacionais em que nos encontramos. Retirar as lições e sabermos bem extrair da História e da determinação "sem sombras" com que temos vindo a construir o presente.
A dinâmica de Portugal de hoje de contatos por excelência que reassume e reorganiza no tempo uma herança tão rica e tão pluralista como a que esperamos ter posto em evidência.
As comunidades luso falantes são prova evidente de um passado que nos devemos orgulhar.
A palavra descobertas ou descoberta: significa aquilo que alguém descobre, representa assim uma possibilidade humana adicional, uma expansão da visão e do poder humano.
Lusofonia mais abrangente não cabe dentro de um museu.
Concordo que depois da extinção da comissão dos descobrimentos, seja criado o espaço de consolidação de Portugal, como uma realidade social e politica própria, impar no contexto de séculos de civilização.
Luisa Timóteo
CORAÇÃO EM MALACA
Caro Renato,
Aplaudo de pé, excelente exposição.
Cumpts,
João Ribeiro
“Museu da Lusofonia” deveria ter esse enfoque, assim promovendo, hoje (felizmente) numa base de liberdade e de fraternidade, a relação entre todos os povos de língua portuguesa."
Portugal nunca esqueça a sua Portugalidade que deverá estar em primeiro lugar que a suposta "fraternidade lusófona". Veja-se a facada no nosso peito pelo governo Angolano ao pedir a adesão à Commonwealth.
Cumpts.
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