O ser humano é o único ser na
natureza dotado de uma dupla historicidade: a herdada (cultural e política) e a
pessoal (a educação que é, a um só tempo, reflexo e projecto de cultura). Todo
o ser humano é, naquela perspectiva, um permanente produtor-consumidor de
cultura.
Obviamente, neste ciclo de inevitável
produção comum de cultura, há sempre alguns que mais se distinguem pela
qualidade, pela inovação criativa – enfim, pela excelência da produção
cultural. A estes chamamos «artistas», aqueles que se dedicam ao fabrico
consciente de beleza.
Natural seria, pois, que a vida e a
natureza – enfim, o múltiplo e permanente inter-relacionamento do homem com o Outro
–, quer seja o seu semelhante, quer seja o mundo, se tornassem fontes
privilegiadas de inspiração e de luminoso despertar artístico. E fonte, assim,
porque apaixonadamente sedutora ela é e se manifesta, pela diversidade de seres,
pela multiplicidade de formas e cores que oferece, pela beleza plural que
exibe, pela sensibilização que gera.
Natural, pois, que José Rodrigues, na
sua Angola natal, sentisse o apelo sensorial que a natureza lhe lançava,
manifestando, desde criança, um gosto pelas artes, nomeadamente pelo barro,
originado pela natureza e que esta permite recriar. Natural, pois, que a sua
ânsia por mais saber e mais aprender o tivesse impulsionado para Portugal, e o
levasse a frequentar o curso de Belas Artes no Porto, que, aliás, terminou com
a nota máxima, e onde viria a ser professor.
Do seu valor e qualidade artística
falam, com indubitável comprovação, o reconhecimento, nacional e internacional,
que granjeou. Expôs, individualmente, em múltiplas geografias, onde o público
se rendeu às suas poderosas esculturas, nomeadamente, de Anjos e Cristos, de um
misticismo impressionante. Participou, também, em diversas exposições
colectivas, tanto em Portugal como em países tão diversos como Áustria, Estados
Unidos, Brasil, Índia, China e Japão, entre outros. Muita é, ainda, a arte
pública, esculpida por José Rodrigues, que podemos apreciar em diversos pontos
do País, como Porto, Viana do Castelo, Monção, Arcos de Valdevez, Vila Nova de
Cerveira, Vila Real e Lisboa, entre outros.
Para além do seu brilhante trabalho
como escultor, José Rodrigues produziu, ainda, cerâmica, medalhística e
ilustrou livros de poetas e escritores de renome e seus amigos, como Eugénio de
Andrade, Jorge de Sena e Vasco Graça Moura. Foi, igualmente, cenógrafo, de
diversas produções no Porto, em Cascais e Lisboa. Lembro, particularmente, as
suas belíssimas produções para a produção de Yerma, de Federico Garcia Lorca, em 1992, que considerou muito
estimulante e provocante, por implicar encenar uma peça onde o ateísmo e a fé
são tão irmãos, a alienação e a libertação tão radicais.
Não posso, nem devo, ainda, esquecer
que foi um dos artistas fundadores da Árvore-Cooperativa de Actividades
Artísticas, em 1963, cooperativa que fez parte da grande renovação cultural da
cidade do Porto, da batalha contra a desertificação, o imobilismo e o
envelhecimento das estruturas existentes. Trata-se, pois, no seu campo de
actuação específico, de um projecto de mediação entre o artista plástico e o
público, entre a cultura e a cidade do Porto, tendo a sua dinâmica divulgado
uma nova linguagem, e criado uma nova forma de relacionamento com a cidade, tornando-a
no que é hoje: uma das mais distintas e distintivas organizações da sociedade
civil portuense no campo da arte e do acolhimento e mobilização de artistas
plásticos.
Mas correcto não seria falar apenas do
José Rodrigues Artista, cuja qualidade tantos apreciam, neles se contando nós –
eu e minha mulher – e, já, também, os nossos filhos. É que José Rodrigues era,
para além de artista, ou talvez por ser também artista, um homem de apurada
sensibilidade, acutilante olhar para a beleza, transcendente olhar para o Homem
e para Deus, e elevada lealdade como amigo.
A sua obra é, pois, uma dádiva, em
primeiro lugar, à arte e à escultura e, por isso, à cultura do País e, depois,
também, à família (a quem nos liga um especial carinho e admiração; à Lindinha,
filhas e netos), aos seus amigos, aos seus muitos admiradores, entre os quais
me incluo, naturalmente, e incluo a minha mulher.
Não posso, pois, deixar de,
reconhecidamente, prestar homenagem, pública, a José Rodrigues, por toda a criatividade
com que, inspiradamente, observava o mundo e recriava a sua beleza, a que o
redemoinho do quotidiano da vida, tantas vezes, nos alheia.
António
Ramalho Eanes