É um lugar-comum mas não deixa
por isso de ser verdade: o passado está constantemente a refazer-se a partir do
presente. E isto em todos os planos: do político ao cultural. No plano
político: imaginemos, por exemplo, que Salazar tinha “caído da cadeira” uma
década antes. Decerto, a sua imagem pública seria hoje bem menos fracturante.
No plano cultural, os exemplos
serão ainda mais eloquentes. Há mil e uma figuras cujo reconhecimento público
só adveio após a morte, nalguns casos de forma tão avassaladora que vieram a
eclipsar outras figuras suas contemporâneas no seu tempo bem mais afamadas.
Fernando Pessoa será, a esse
respeito, um exemplo paradigmático, provavelmente o exemplo mais paradigmático
do nosso século XX. Se não é verdade que, como reza a lenda, no seu funeral
estivessem apenas meia dúzia de pessoas (e há até fotografias que o comprovam),
de facto, quando faleceu, Fernando Pessoa estava muito longe de ser o maior
ícone cultural português do último século, como depois se veio a tornar.
E de tal forma avassaladora
que Pessoa veio a eclipsar outras figuras suas contemporâneas, desde logo
muitos dos seus companheiros de estrada de “Orpheu”. O próprio fenómeno
“Orpheu”, globalmente considerado, pelo efeito retroactivo da fama póstuma de
Pessoa, teve também essa consequência. Ainda hoje, há quem insista em contrapor
o “Orpheu” à “Águia” como quem contrapõe o futuro ao passado.
Teixeira de Pascoaes, como
sabemos, ainda hoje sofre esse estigma, tão generalizado quanto ignorante: o de
representar o passado face ao “futurista” Pessoa. Mas Pascoaes conseguiu
sobreviver bem a isso, tal a grandeza das figuras que o defenderam em vida e
após a morte. Se houve poeta filosoficamente valorizado, mesmo em comparação
com Pessoa, foi, de resto, Pascoaes. Apenas um exemplo: as centenas de páginas
que o filósofo José Marinho lhe dedicou, entretanto coligidas no volume “Teixeira
de Pascoaes, Poeta das Origens e da Saudade” (INCM, 2005) constituem, ainda
hoje, um marco inultrapassado.
Já Raul Brandão é um caso
diferente. Num texto recente (Público,
15,03.2017), Luís Miguel Queirós qualificou Brandão, a nosso ver de forma
certeira, como “a outra modernidade que a geração de Orpheu ensombrou”. Oxalá este Colóquio (“Primavera eterna: nos 150
anos do nascimento de Raul Brandão, no centenário da publicação de Húmus”, Palácio de Seteais, 25-27 deMaio de 2017) ajude a alterar esse panorama, trazendo de novo à luz, já no
século XXI, uma das estrelas maiores do nosso firmamento literário.
No seu vigésimo número, a ser
lançado no segundo semestre do presente ano, a “Nova Águia: Revista de Cultura
para o século XXI”, que dirigimos, procurará igualmente contribuir para esse
desiderato, dando o devido destaque a Raul Brandão e à sua obra – mas não
apenas a Húmus, que por vezes parece
também eclipsar, injustamente, toda a obra restante. De igual modo, podemos desde
já antecipá-lo, teremos ainda uma série de textos sobre José Rodrigues, autor
da capa do primeiro número da “Nova Águia”, falecido há menos de um ano, e D.
Francisco Manuel de Melo, outro autor que vale bem a pena recordar, por ter
sido, também ele, um autor “eclipsado”: no caso, pelo “Imperador da Língua
Portuguesa”, Pe. António Vieira.
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