Técnica, no fundo, é uma coisa de
fazer coisas; mas política é uma arte de fazer gente, como se poderia dizer que
religião é uma arte de fazer santos. De modo que todas as noções, que às vezes
passam na cabeça de pessoas ou desagradadas da política ou às quais, de
qualquer modo, ainda a política põe freio, de que se deviam substituir os
governos de políticos por governos de técnicos, que seriam cegos aos fins mais
altos de ordenação humana para sua vida na terra, são tão inteiramente absurdas
como as pretensões dos que também vezes demais têm tentações de substituir os técnicos
por políticos. Político se tem de conservar, e o com o seguinte pensamento,
consolador ou não, segundo a medida da esperança e da fé: o de que, se maus são,
a nossa própria maldade representam; o homem que se queixa dos políticos raras
vezes é melhor do que eles; senão na sua moral ou comportamento pessoais, pelo
menos no que respeita às suas acções e reacções quanto ao colectivo.
Assente este princípio
fundamental que poupará muita aventura com políticos tão refinadamente políticos
e maquiavélicos que até nem como políticos se apresentam, mas apenas como técnicos
devotados ao futuro das pátrias, temos naturalmente de pensar, se quisermos um
dia viver sob o signo de uma comunidade de povos de língua ibérica, a que
objectivos de ordenação interna, quanto a governo, terá de rumar o político
novo. Temos de saber quais são os traços fundamentais que nos distinguem, a nós
todos, de Mato Grosso ou da Galiza, da Valência ou de Lourenço Marques, dos
outros povos que outros sistemas mais ou menos estáveis conseguiram edificar,
ao passo que nós, pelo menos de certa altura por diante, e ponho a linha de
quebra pelo fim da Idade Média, com os primeiros surtos de Reforma,
Nacionalismo, Absolutismo Real e Direito Romano, temos vivido de má adaptação
em má adaptação, governando-nos na realidade por métodos inteiramente
estrangeiros ao nosso mais profundo modo de ser, impelidos como temos sido por
nossa inconsciência de vocação, por nossos males económicos e pelo prestígio
das modas lavrantes nos países que têm mais de nossa veneração do que aquilo
que merecem, a aceitar regimes que só dão respostas incompletas, quando muito,
ao nosso mais íntimo apelo.
O qual é, em primeiro lugar, um
apelo de liberdade de crítica. Ninguém mais do que os nossos tem estado sempre
alerta na defesa do que lhe aparece não apenas como um direito primordial, mas
como uma das linhas fundamentais da própria estrutura do espírito. Tem-se dito
muitas vezes na história da cultura que português, espanhol ou sua progenie, não
têm espírito crítico, o qual, por exemplo, se entrega ao francês. Mas aqui se
devia distinguir entre o espírito crítico e espírito de simplificação que é, em
geral, o que tem o francês; e, por outro lado, devia ficar bem assente que espírito
crítico não tem obrigatoriamente que se exercer em literatura ou em pintura; é
bem mais geral do que isso: e não eram talvez destituídos de espírito crítico
os homens que, abalando a física medieval, deram que reflectir a Bacon ou a
Descartes e, em seguida, com Spinoza, lhes completaram a obra. O que, porém, importa
agora é reconhecermos que o espírito crítico de nossa gente se põe com
particular agudeza no que respeita ao negócio político: e defendeu sempre,
através das piores provas, o seu direito a criticar e a, por aí, colaborar nas
coisas públicas.
É esta a razão por que nunca
nenhum regime de carácter autoritário se conseguiu estabelecer entre nós por
muito tempo; é como se se tentasse fazer dos homens animais de quatro patas; ao
fim do tempo de sujeição a que por suas fraquezas os seus pecados não podem
fugir, eles se reerguem na postura erecta que faz parte de sua condição; é esse
o espectro de todo o ditador: a liberdade surgirá, por maiores que tenham sido
as peias e mais dispendiosos os esforços de uma errada educação; aqui está por
certo o dito árabe: pode o defensor da liberdade sentar-se numa pedra e
esperar; acabará por lhe passar diante o cadáver de seu inimigo. Poderíamos
dizer de nós, como de Deus, que a nossa fatalidade é a de ser livre. E está
condenado por si mesmo todo o regime que ponha entraves ao direito de falar e
de escrever e de, por aí, como é bom repetir, colaborar nas tarefas do governo.
Porque reside neste ponto outra
das nossas características como gente de vida pública; preferimos que nos
comandem a que nos perguntem a nossa opinião, ressalvando sempre o princípio de
que podemos censurar o dito comandante ou lhe pedir contas. Estamos vigilantes
quanto ao bem público e estaremos prontos a lhe dar nossa opinião de a pedir;
mas preferimos que se encarregue sozinho de todo o trabalho de rotina e nos
deixe sonhando com os nossos sonhos ou, paradoxalmente, ocupados com os nossos
lazeres. Quer isto dizer também que estamos prontos a aceitar o bom político
governante, ou, noutras palavras, o estadista; mas que não temos especial gosto
pelo político que não governa nem deixa governar. De modo que, em resumo, não
nos dispomos a participar da república senão pela vigilância e pela crítica e
pela liberdade de mudarmos de governo conforme nos parecer conveniente; tendo
um especial gosto e uma especial vocação para a empresa colectiva que nos for
comandada, não temos, por outro lado, grande interesse em participar do comando.
O que o torna naturalmente mais difícil e mais perigoso para quem o tomou: mas
quando alguém se mete numa empresa o que tem de fazer, para que seja realmente
interessante, é de pedir que lhe reserve bastantes perigos e bastantes
dificuldades.
A conclusão seria naturalmente a
de que teríamos de constituir uma forma de governo que desse, primeiro, uma
inteira liberdade de expressão, resguardados, como é evidente, todos os
direitos de convivência e que visse todas as críticas que se lhe fizessem não
como um impedimento à acção, que lhe seria sempre livre, mas como um auxílio
para que ela não viesse a mostrar-se errada; como, igualmente, o mais poderoso
dos antídotos contra a vertigem do poder que é capaz de se apoderar mesmo do
melhor dentre todos; finalmente, como a única possibilidade de acertar o seu
passo pelo passo da comunidade, fora do que fazer política é como criar
batata-doce no Pólo Norte: interessante, mas fora de ambiente e efémero.
Estabelecida a liberdade de
expressão, tem o governo de ter, ante quem o elege, autoridade e continuidade. E
é o que não acontecido com a maior parte dos governos chamados democráticos ou
de partido, quer na forma presidencialista, quer na forma parlamentar; têm
pecado por fraqueza, o que é o perfeito ambiente para que as ditaduras surjam,
e têm pecado pelas flutuações a que os submetem interesses de grupo ou as
incompetências e desocupações das Câmaras. Foi um erro que as Cortes, depois do
longo intervalo de poder absoluto dos reis, não tivessem reaparecido, com o
surto liberal, nas sua forma de reunião apenas temporária e as data dilatadas e
muito mais como conselheiras do Poder do que como suas determinantes. A sua
soberania, depois de substituída a monarquia pela república, deveria exercer-se
fundamentalmente no sentido de vigiar o governo e o derrubar ou reeleger, e de
o reeleger pelos mais longos períodos que fosse possível.
Se deste modo se poria o regime
quanto ao governo central, teria toda a reforma de estrutura indispensável à
construção de um mundo ibérico, e veremos para outra vez de que modo se tem de entender
esta expressão de mundo ibérico, de entrar em linha de conta com outro elemento
que os governos, herdando os vícios do absolutismo, tanto têm desprezado. Quero
eu referir-me à descentralização administrativa e política. Nada se fará com as
nossas terras e a nossa gente sem que se dê a mais larga iniciativa, sempre
dentro de um quadro geral, aos governos municipais. Não são os pequenos núcleos
de população que têm de melhorar porque melhorou o governo central; temos de pôr
a questão inteiramente ao contrário; são os governos centrais que têm de
melhorar porque melhoraram os governos municipais. É a excelência dos outros, não
a sua, que o governo central tem de entender e ordenar a um fim.
Sem comentários:
Enviar um comentário