Costuma-se dizer, especialmente na academia, que foi o historiador português António Manuel Hespanha quem, ao publicar As vésperas do Leviathan: instituições e poder político, Portugal, século XVII (Coimbra, Livraria Almedina, 1994), trabalho de arqueologia do poder judiciário no Portugal seiscentista, abriu a senda para esse tipo de estudos da estrutura administrativo-judiciária do império português.
De fato, na esteira de Hespanha vieram O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII), de João Fragoso, Maria Fernanda Bicalho e Maria de Fátima Gouvêa, orgs. (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001), Direito e Justiça no Brasil colonial: o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro – 1751-1808 (Rio de Janeiro, Editora Renovar, 2004), de Arno e Maria José Wehling, que procuraram mostrar como funcionava a máquina judiciária no Brasil setecentista, Modos de governar: idéias e práticas no Império português séculos XVI a XIX, de Maria Fernanda Bicalho e Vera Lúcia Amaral Ferlini, orgs. (São Paulo, Alameda, 2005) e O governo dos povos, de Laura Mello e Souza, Junia Ferreira Furtado e Maria Fernanda Bicalho, orgs. (São Paulo, Alameda, 2009), entre outros trabalhos que estudam a organização judiciária a uma época, a do Antigo Regime, em que o Estado era um amálgama de funções em torno do rei e não havia a divisão de poderes e funções, ao estilo de Montesquieu (1689-1755).
Portanto, a assertiva é verdadeira. Mas não se pode deixar de reconhecer que, muito antes desse tipo de estudo entrar em moda, o historiador norte-americano Stuart B. Schwartz escreveu Burocracia e sociedade no Brasil colonial: a suprema corte da Bahia e seus juízes (1609-1751), pesquisa desenvolvida entre a segunda metade da década de 1960 e início da de 1970, publicada em inglês em 1973 e no Brasil em 1979 pela Editora Perspectiva, de São Paulo. Agora, a Companhia das Letras acaba de publicar Burocracia e sociedade no Brasil colonial: o Tribunal Superior da Bahia e seus desembargadores, 1609-1751, nova tradução, de Berilo Vargas, com título ligeiramente modificado, novo prefácio do autor e apresentação da professora Laura de Mello e Souza, além de algumas notas de rodapé que foram acrescidas e um novo apêndice documental.
II
No novo prefácio, Schwartz lembra que, à época em que escreveu o livro, ainda ao tempo da ditadura salazarista, a história administrativa de Portugal e seu império não estava bem desenvolvida. Mas, de qualquer modo, o trabalho de Schwartz não perdeu o viço, sendo citação obrigatória em qualquer tipo de estudo sobre o tema, ao lado do de Arno e Maria José Wehling. Ao contrário do que defendia Raymundo Faoro, em Os donos do poder (Porto Alegre, Editora Globo, 1ª ed., 1958), livro igualmente ainda importante na análise do tema, Schwartz mostrou que a história do Brasil nunca foi produto de uma luta entre a sociedade e o Estado português e seus funcionários que seriam indiferentes e exploradores. Era uma visão um tanto idílica e excessivamente patrioteira, que procurava construir uma idéia de Nação brasileira. Schwartz mostrou --- e os estudos posteriores só confirmaram essa posição – que grupos sociais – aqueles que, de um modo ou de outro, haviam assumido o controle das terras e haviam se tornado proprietários, graças a toda a sorte de falcatruas e violência contra os menos afortunados – haviam usado a máquina administrativa e judiciária para tornar “legais” as suas ações. Nunca tiveram em conta nenhum antagonismo entre o Reino e a colônia, preferindo, ao contrário, levar o Estado a favorecê-los, sempre tirando proveito de sua força para subjugar os que estavam por baixo.
Aliás, essa relação pouco mudou porque, no século XXI, o que se pratica especialmente no chamado Brasil profundo é um Direito às avessas em que o Judiciário, muitas vezes, atua de maneira célere quando se trata de beneficiar os grandes proprietários e os endinheirados que podem contratar os melhores advogados e usar de suas influências para arrancar sentenças à medida de seus interesses.
Schwartz mostrou ainda como a classe proprietária tratou de incorporar os juízes da Relação da Bahia -- e aqueles que estavam mais abaixo na escala hierárquica, nas demais capitanias – em suas relações, fosse pelo casamento desses magistrados com moças da terra – obviamente, suas descendentes –, fosse por outras formas. Em outras palavras: a velha aristocracia latifundiária e militar sempre serviu a Coroa portuguesa em várias posições. E nunca pensou em rebelar-se contra isso.
III
Como observa o autor em suas conclusões, a integração da magistratura e sociedade ligou a elite econômica à elite governamental num casamento de riqueza e poder. Dessa maneira, segundo Schwartz, a corrupção da burocracia, fosse por laços de família, fosse por dinheiro, deixou a ampla maioria dos moradores da colônia impossibilitada de tomar parte no controle do próprio destino. O que equivale a dizer que a separação em 1822 em nada alterou esse estado de coisas, tendo sido mais um movimento com o objetivo de preservar os interesses da Casa de Bragança.
Para o escravo, para o vaqueiro, para o sapateiro, enfim, para os “nacionais”, ou seja, aquela maioria de pessoas luso-brasileiras, brancos pobres, mulatos, carijós, caboclos, cabras ou cafuzos, tanto fazia se a opressão vinha de Lisboa, da Bahia ou do Rio de Janeiro, dos funcionários formados em Lisboa, ou juízes de fora ou ouvidores, ou mesmo dos juízes ordinários das Câmaras ou dos potentados locais – que quase sempre eram as mesmas pessoas.
IV
Segundo Schwartz, quando o Brasil passou do governo dos donatários das capitanias para o controle direto pela Coroa, os funcionários judiciais – primeiro o ouvidor-geral e depois os desembargadores da Relação, os ouvidores de capitania e os juízes de fora – assumiram papéis administrativos e políticos extremamente importantes. Como ganharam poder e prestígio cada vez maiores, a elite colonial se sentiu propensa a fazer alianças com eles, muitas vezes, estimulando seus rebentos a que também estudassem em Coimbra e voltassem nomeados juízes de fora ou ouvidores. Com isso, obviamente, procuravam preservar seus próprios interesses e garantir futuras facilidades no trato com o Estado.
Seja como for, não há dúvida que a magistratura letrada alcançou à época do Brasil colonial uma importância capital. Se a presença do juiz togado foi um elemento de enfraquecimento das estruturas locais que, se jogou indiretamente a favor da Coroa, reverteu imediatamente em prol do fortalecimento da rede burocrática de que juízes de fora, corregedores e provedores faziam parte, ao lado dos ouvidores de comarca. Se nos primeiros tempos a imensa maioria dos conflitos era resolvida nos tribunais locais, por meios formais ou informais, levando-se em conta costumes e tradição, com a presença da magistratura letrada, boa parte das questões passou a ser analisada sob a ótica e o rigor das leis que eram estudadas em Coimbra, reduzindo assim a autonomia local.
No entanto, se os juízes ordinários perderam poderes para ouvidores, juízes de fora, corregedores e provedores, por outro lado, não deixaram de acumular muitas atribuições e incumbências, ao lado dos demais camaristas, especialmente na questão da arrematação dos contratos – na cidade de São Paulo, na década de 1740, por exemplo, os principais contratos que iam à arrematação em dezembro pelo Senado da Câmara eram os da carne, aferição e estanques –, que, a rigor, era o que atraía os interesses de uma elite formada quase exclusivamente por comerciantes. Portanto, se magistrados nos mais altos escalões podiam ser subornados por razões de parentesco ou propina, a arraia-miúda do funcionalismo se sentia estimulada ao mesmo procedimento. E essa cultura se disseminou a tal ponto que nem mesmo as classes subservientes entendiam esse procedimento como impróprio ou antiético. O normal é que, quando alguém galgasse um posto de mando no governo, favorecesse parentes e apaniguados. E tratasse de usar a coisa pública em favor de interesses privados.
Essa mentalidade fincou raízes profundas no subconsciente do povo brasileiro, como mostra o uso disseminado do “pistolão” – ou da “cunha”, como se diz em Portugal – no Brasil contemporâneo tanto nos rincões como em Brasília, hoje a cidade que, se não for a que apresenta o maior índice de corruptos por metro quadrado, está perto desse desiderato. Portanto, para quem procura entender o Brasil de hoje, a leitura desta obra de Schwartz é fundamental. V
Doutor pela Universidade de Columbia, Schwartz é professor titular de História na Universidade Yale e editor da Cambridge History of Native People of Americas e da Hispanic American Historical Review. Entre vários estudos, publicou Segredos internos - engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835 (Companhia das Letras, 1988), Escravos, roceiros e rebeldes (Edusc, 2001), As excelências do governador (co-organizador, Companhia das Letras, 2002) e Cada um na sua lei - tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico ibérico (Companhia das Letras, 2009).
BUROCRACIA E SOCIEDADE NO BRASIL COLONIAL: O TRIBUNAL SUPERIOR DA BAHIA E SEUS DESEMBARGADORES, 1609-1751, de Stuart B. Schwartz, com tradução de Berilo Vargas e apresentação de Laura de Mello e Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 414 págs., 2011, R$ 59,50.Site: companhiadasletras.com.br
(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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