1. Estranhamente, com excepção de Mário Crespo e do seu “Jornal das 9” na SIC Notícias, que a Aristides se referiu ontem, entrevistando o seu neto com o mesmo nome, e a quem daqui agradeço, passou em claro nos órgãos de informação portugueses mais um aniversário do nascimento do Cônsul Aristides de Souza Mendes, ocorrido em 19-7-1885, tendo falecido em 3-4-1954 no Hospital da Ordem Terceira, em Lisboa, na maior miséria, pois já não tinha nada para vestir e foi sepultado na sua terra, Cabanas de Viriato, envergando um hábito franciscano.
Também estranhamente, a sua bela Casa do Passal, sita em Cabanas de Viriato, concelho de Carregal do Sal, apesar de ter sido classificada como património nacional, continua em ruínas, abandonada, apesar de há muito existir um projecto para a recuperar e lá instalar um Museu à Paz e aos Direitos Humanos.
Ora, este humanista e corajoso Homem não merecia este estranho esquecimento dos homens e especialmente do poder político… tanto mais que ele foi não só um precursor da defesa dos Direitos Humanos como, para mim, foi o maior herói português do séc. XX. Vejamos porquê.
2. Um verdadeiro herói Lusófono
Herói é, em geral, o que se evidencia de armas na mão, perante circunstâncias desvantajosas. Permitam-me que vos fale hoje de um herói diferente, que não matou nem molestou ninguém e que, ‘armado’ apenas de uma simples caneta, salvou, em 1940, mais de 30.000 vidas humanas de uma morte certa nos campos de concentração nazis.
Como Diplomata de carreira, Aristides ocupou diversas delegações consulares portuguesas pelo mundo fora: 1910, Guiana Britânica; 1911, Galiza (Espanha); 1911-1918, Cônsul em Zanzibar, cujo Sultão o condecora pela sua ação política na I Guerra Mundial; 1918-1921, Curitiba (Brasil), onde lhe nasce 1 filha; 1921, S. Francisco (EUA), onde nascem mais 2 filhos;1924-1927, Maranhão e Porto Alegre (Brasil); 1927-1929, Vigo (Espanha); 1929-1938, Antuérpia e Grão Ducado do Luxemburgo; até que, em Setembro de 1938 é nomeado Cônsul-Geral de Portugal em Bordéus (França), estando, pois, aí, quando eclodiu a II Guerra Mundial, em 1939.
Para melhor se compreender o seu gesto heróico, convém salientar que era então patente uma ação encapotada pró-nazi do Chefe de Governo Português, Oliveira Salazar e da então PVDE (polícia política do ditador), que não só foi treinada como em boa parte equipada pela Gestapo (tristemente famosa polícia política nazi). Salazar acumulava a Presidência do governo com a pasta de Ministro dos Negócios Estrangeiros e o cúmulo da sua desfaçatez de pseudo-neutralidade está patente na sua famigerada “Circular 14”, proibindo os diplomatas de dar vistos a apátridas, refugiados ou sem pátria, determinando que recusassem vistos aos “estrangeiros de nacionalidade indefinida, contestada ou em litígio; aos apátridas, aos judeus, quer tenham sido expulsos do seu país de origem ou do país de onde são cidadãos”, quando vários países já estavam ocupados: Áustria, Checoslováquia, Polónia, Luxemburgo, Holanda, Bélgica e de, num ápice, os nazis terem invadido a França. Daí magotes de pessoas fugirem pelo chamado corredor de Bordéus para a liberdade.
Aristides, homem de sólidos princípios morais e éticos, resolve desobedecer a essa iníqua ordem, perante a perseguição e o extermínio nazi de que tinha notícia, pois, como Cônsul experiente e inteligente, tendo sido colocado em Bordéus em 1939, soube atempadamente o que Hitler estava a fazer e nomeadamente que, em 25/1/1940 os nazis acabaram de construir o campo de concentração de Auschwitz e que para o mesmo foram conduzidos imensos prisioneiros a partir de 20/5/1940, pelo que o seu espírito de homem de bem temeu o pior e logo em Maio de 1940 passou os primeiros vistos. Até que, em Junho, perante a avalanche de refugiados, esteve três dias e três noites sem parar a passar vistos.
Segundo o testemunho do Rabino de Antuérpia, Jacob Kruger, Aristides passou 30.000 vistos em Bordéus (1/3 dos quais a Judeus), mas dali ele foi ainda aos Sub-Consulados de Bayonne e Hendaye, sob sua jurisdição, emitindo também muitos vistos, mas Salazar furioso logo o destituiu e obrigou a regressar a Portugal. Pois mesmo pelo caminho ele passou vistos, pelo que o número de vidas que salvou foi, com certeza, muito superior a 30.000, segundo uns 35.000, segundo outros 38.000.
Aristides na verdade desobedeceu a Salazar, mas tal desobediência foi inteiramente justificada, perante uma ordem desumana. Com efeito, como jurista, quero aqui salientar um aspecto de Direito que ainda não vi invocar: era e é legal agir em legítima defesa de terceiros e foi isso, precisamente, que o Cônsul fez, pois mais do que respeitou os requisitos essenciais da legítima defesa – perigo eminente, adequação e proporcionalidade de meios na defesa de terceiros – já que se limitou a usar uma “pacífica” caneta e um carimbo.
Esclareço que, na minha opinião de jurista, a famigerada “Circular 14” é que era ilegal e anticonstitucional, pois, apesar da Constituição Portuguesa de 1933, então vigente, ser protofascista, já proibia a não discriminação entre pessoas de raças e credos diferentes e foi isso que Aristides respeitou. Salazar é que não cumpriu o que tal Constituição estabelecia e, num comportamento ignóbil, mesquinho e vingativo, moveu-lhe um processo disciplinar e em 23 de Junho de 1940 aposentou-o compulsivamente da função pública (demitiu-o) e condenou-o autenticamente a uma morte lenta, ao proibi-lo de exercer qualquer profissão, mormente advocacia.
Aristides, como jurista, bem se tentou defender, mas tudo em vão. No processo disciplinar Salazar usou o seu poder discricionário e decidiu demiti-lo e condená-lo a uma morte em vida, como já referi, e não obteve justiça no então Tribunal Administrativo – único a que na altura podia recorrer, pois inexistia então o Tribunal Constitucional nem era possível a um funcionário recorrer aos Tribunais comuns – sendo que os Juízes daquele eram escolhidos a “dedo” pelo poder vigente. Tal como nada conseguiu do seu apelo à então Assembleia Nacional, como bem se compreende, pois a mesma era na totalidade composta por membros do partido único, designado “União Nacional”, como aliás era timbre das ditaduras de tipo fascista, como era a de Salazar.
Mas a história não acaba aqui, pois continuou com dois dos filhos de Aristides, Carlos Francisco Fernando e Sebastião Miguel Duarte, nascidos nos EUA em 1922/23, quando ele foi Cônsul em S. Francisco, que deram sequência ao corajoso ato de seu pai, alistando-se, em 1943, no exército americano (tinham dupla nacionalidade). Terão sido os dois únicos portugueses que participarem no dia “D” – 6.6.1944 – data do desembarque dos Aliados na Normandia, combatendo os nazis até Berlim.
3. Para quando a recuperação da Casa do Passal?
Por tudo quanto antecede e não só, apelo daqui, deste humilde blogue, para que todos os homens livres, justos e de bons costumes, unam esforços em prol da recuperação da Casa do Passal, desde logo reclamando junto do poder político e municipal, para que finalmente lá seja instalado um Museu à Paz e aos Direitos Humanos, como o nobre gesto de Aristides mais do que justifica.
Publicado em 20-7-2011 no blogue ‘JorgePaz’ do site www.sol.pt
Link: http://comunidade.sol.pt/blogs/jorgepaz/default.aspx
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