A recente
edição das Obras Escolhidas de Arnaldo de
Pinho, em cinco volumes (Ed. Letras e Coisas, 2012/ 2020), dá-nos um
excelente retrato de um homem do mundo, de um homem “com mundo”. À luz dos
diversos tópicos em que se estruturam essas Obras
Escolhidas – “Teologia e Interpretação” (I), “D. António Ferreira Gomes:
Biografia e Pensamento” (II), “Cultura da Modernidade e Evangelização” (III),
“Leonardo Coimbra, ou o Caminho do Absoluto” (IV) e “Dispersos” (V), em que
salientamos a sua atenção à poesia, nomeadamente, de Fernando Echevarría e de
Sophia de Mello Breyner –, Arnaldo de Pinho, com efeito, dá mostras de uma
singular amplitude e profundidade de interesses e de referências. Eis o que
igualmente se apreende numa conferência sua proferida por ocasião do Centenário
da Faculdade de Letras do Porto (2019): “Duma Filosofia da Liberdade a uma Pedagogia
da Liberdade: Leonardo Coimbra e a ideia fundadora inicial da Faculdade de
Letras do Porto” (in Comemorações do
Centenário da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, FLUP,
2021, pp. 145-155), texto de que aqui partiremos.
Neste texto,
começa Arnaldo de Pinho por evocar a figura matricial da primeira Faculdade de
Letras do Porto, Leonardo Coimbra, convocando, para o efeito, Manuel Ferreira
Patrício, “um dos melhores conhecedores do pensador da Lixa”, como refere –
estatuto que a recente edição das suas Obras
Escolhidas (Ed. MIL/ DG Edições, 2021) veio confirmar. E logo o texto se
irradia num feixe de diálogos paralelos: nomeadamente, com Ortega y Gasset e
Santo Agostinho. Num feixe de diálogos e de questões: “Qual é a relação que
existe entre a vida e a obra dum filósofo?”; terá sido o pensamento de Leonardo
um pensamento “não sistémico”, ou mesmo “anti-sistémico”? A sua ancoragem em
Leonardo Coimbra, “aliando racionalidade abstracta e realidade concreta”,
permite-lhe – e permite-nos –, porém, “ultrapassar a razão meramente judicativa,
sem, contudo, entrar em delírio irracional”. Daí, como salienta, “o lugar que
tem na sua obra e na sua vida pública a intuição, a empatia, o sentimento, a
saudade, a alegria e a dor, a graça e a amizade. E nestas imbricado, o sentido
construtivo duma razão em busca.” (pp. 145-146).
Daí ainda,
como acrescenta, “a identidade de Leonardo Coimbra”, “identidade que lhe
permite ir para a realidade com entendimento e paixão, assumindo momentos de
lirismo e saudade, perante a vida e a natureza, a multiplicidade do Universo ou
o mistério de Deus; mas também a incompreensão por parte daqueles que, viciados
nos hábitos mentais do racionalismo e de uma cultura historicista, reduzem o
pensamento a um conjunto de cânones, segundo os quais a realidade se lê
uniformemente compassada”. A este respeito, convoca um outro autor, Miguel de
Unamuno, que cita nos seguintes termos: “A filosofia é um produto humano de
cada filósofo e cada filósofo é um homem de carne e osso como ele. E faça o que
fizer, filosofa, não apenas com a razão, mas com a vontade, com o sentimento,
com a carne e com os ossos, com a alma toda e com o corpo todo. Filosofa o
homem” (p. 146). Eis, curiosamente, uma questão que havia já sido motivo de
reflexão por parte de um dos mais distintos discípulos de Leonardo Coimbra:
José Marinho. Na sua primeira obra publicada, precisamente sobre o seu Mestre,
escreverá, em réplica a Unamuno, que “um homem que não é filósofo é tudo menos
um homem” (in O Pensamento Filosófico de
Leonardo Coimbra: introdução ao seu
estudo, Livraria Figueirinhas, 1945, p. 40).
Perante este
aparente dilema – “um filósofo que não é um homem é tudo menos um filósofo”
(Unamuno) e “um homem que não é filósofo é tudo menos um homem” (Marinho) –,
Leonardo Coimbra – e Arnaldo de Pinho, na sua esteira – diriam, provavelmente,
que ambas as teses são verdadeiras, tão verdadeiras quanto complementares. A
vida dos dois parece, pelo menos, comprovar tal presunção: foram os dois
filósofos (e teólogos) porque essa foi a sua forma (necessária) de serem
humanos; e não deixaram por isso, enquanto filósofos, de serem humanos… No que
respeita à vida de Leonardo Coimbra, salienta ainda Arnaldo de Pinho, citando
António Quadros, que “quando a poderosa inteligência de Leonardo Coimbra surge
na vida portuguesa, encontra uma situação mental esvaziada de conteúdo. A
segunda metade do século XIX assistira por um lado à crítica da teologia
católica ou do magistério eclesiástico e por outro ao triunfo intelectual de um
pensamento estrangeirado nas linhas de força que, vindas do iluminismo
setecentista, desembocavam no positivismo e idealismo” (p. 147). E eis-nos aqui
perante um outro aparente dilema: se o pensamento filosófico é verdadeiramente
universal, será essa universalidade necessariamente “estrangeirada”?
A própria vida de Leonardo Coimbra (e a de Arnaldo de Pinho) parece, uma vez mais, refutar esse equívoco que teima em persistir entre nós. Com efeito, se o pensamento filosófico (e teológico) é verdadeiramente universal, e só o será se assim for, essa universalidade não é necessariamente “estrangeirada” – pelo contrário. Daí a atenção de ambos, de Leonardo Coimbra e de Arnaldo de Pinho, pela nossa língua e cultura. Como salienta ainda Arnaldo de Pinho, citando um outro distinto discípulo de Leonardo Coimbra – Álvaro Ribeiro –, uma das suas motivações maiores foi a de “dotar a cultura portuguesa de um ensino superior de Filosofia” (p. 152). Daí, em suma, toda a importância da primeira Faculdade de Letras do Porto – ainda nas palavras de Álvaro Ribeiro: “o curso superior de Filosofia pensado por Leonardo Coimbra para instituir nas faculdades de Letras, realizaria, a breve ou longo prazo, uma reforma total da Universidade portuguesa” (id.). Escusado será aqui constatar que essa “reforma total da Universidade portuguesa” está ainda por se cumprir. Todos o sabemos… Arnaldo de Pinho, na conclusão do seu texto, salienta que o pensamento leonardino é essencialmente uma “Filosofia da Liberdade” (p. 154). O problema, como também todos nós sabemos, é que a Liberdade de que Leonardo fala não é de todo a mais praticada – na sua lapidar definição: “a liberdade é o poder do espírito criar beleza” (in Águia, nº 2, 1912).
Eis, ainda segundo José Marinho, como ele próprio defendeu na sua última obra, já publicada postumamente, um ano após a sua morte (Verdade, Condição e Destino no pensamento português contemporâneo, Lello, 1976) o que os auto-proclamados “modernos” igualmente esqueceram, negando a liberdade humana, ou afirmando-a apenas na sua forma mais extrínseca, mais superficial, ou seja, afirmando-a apenas enquanto “liberdade do homem”, e não enquanto “liberdade no homem”, a forma de liberdade “mais autenticamente filosófica (…), a mais difícil, por consequência, de assumir” (p. 107), acrescentando: “Não, não se trata de saber se o homem é livre. Este foi o problema tipicamente moderno, europeu, do humanismo pressuroso e simplificador. Não, não se trata de saber se o homem é livre, mas sim, e como primeira instância problemática, de saber em que medida a liberdade se vive e se pensa, nele e para ele. Trata-se, sim, de saber se há liberdade no homem. Como compreender de outro modo o que chamamos espírito, como compreender o pensamento em sua autêntica fonte e no mais autêntico do seu processo?” (p. 156). Para uma “reforma total da Universidade portuguesa”, mais, muito mais do que isso, para uma “reforma total” da nossa própria vida, individual e colectivamente considerada – enquanto Povo, enquanto Pátria… –, eis, a nosso ver, a Liberdade que mais importa pensar, a Liberdade que mais importa cumprir.
Sem comentários:
Enviar um comentário