Quase um século depois a sua primeira publicação, A Rebelião das Massas, de Ortega y Gasset permanece como uma das
obras mais icónicas para o pensar do nosso tempo. Por isso, tem permanecido
como uma obra amplamente citada, como uma fonte sempre renovada para uma reflexão
mais aprofundada sobre os dias de hoje. Mesmo em Portugal, em que o diálogo
filosófico e cultural com Espanha continua, por conhecidas razões
histórico-políticas, a ser bem menor do que seria desejável, isso tem
acontecido – e, por isso, a obra de Ortega y Gasset, em particular a sua A Rebelião das Massas, foi, ao longo de
todas estas décadas, objecto das mais diversas leituras.
Gustavo de Fraga é, a esse respeito, um caso paradigmático – nomeadamente
na sua obra
Fidelidade e Alienação (Ponta Delgada, Instituto Universitário dos Açores, 1977
), em que, a respeito da “crise” existencial
que vivenciamos (e o conceito de “crise” é, como se sabe, um dos
conceitos-chave da obra),
Ortega y Gasset aparece, naturalmente, como um seu interlocutor,
amplamente citado – apenas um exemplo: “O problema da crise terá de pôr-se em
relação com a mudança de alguma coisa no nosso mundo ou com a mudança do que é
o nosso mundo. Normal, como nota Ortega (…), é que de uma geração para outra se
mude um tanto a figura do mundo, mantendo-se no entanto a sua estrutura geral”
(p. 106).
Nessas passagens, há uma evidente concordância de princípio, em
particular no que diz respeito ao fenómeno da “desenvolvimento de uma sociedade
de massas”, tão característico do nosso tempo, que tem conduzido “a uma
mecanização, automatização e funcionalização da vida em geral” (p. 121) – a
título de exemplo, atentemos ainda nas seguintes: “Este homem de massa tem um
instinto, (…), que o inclina imediatamente a adoptar a atitude da multidão, e
pelo qual se indiferencia, quer na moda, quer nas ideias” (p. 51); “Entre o
sábio e o ignorante, o especialista é uma nova categoria de homem. Não é sábio
porque só sabe da especialidade, não é ignorante porque é homem de ciência.
Será ignorante em arte, em política, nas outras ciências, que não na sua, nos
usos sociais, comportando-se como homem-massa em inúmeras esferas da vida” (p.
73).
Não obstante essa evidente
concordância de princípio, há porém algumas passagens em que Gustavo de Fraga
não deixa de assinalar algumas distâncias relativamente a Ortega y
Gasset, sobretudo a respeito do seu alegado “aristocratismo”, considerando
inclusivamente que mesmo o seu liberalismo é “terrivelmente aristocrático” (p.
44) e que cabia à própria Universidade – como sua “missão”, conforme
expressamente refere – “fazer do homem médio um homem culto, possuindo uma
imagem física do mundo, conhecendo o processo histórico da humanidade, e tendo
uma noção dos temas fundamentais da vida orgânica, bem como a ideia da
sociologia. Além disso, o homem médio que a Universidade cria terá na filosofia
um plano do universo” (p. 42).
Neste ponto, está Gustavo de Fraga bem mais próximo de
um outro filósofo português, Amorim de Carvalho, que, também em réplica a
Ortega y Gasset, escreveu o seguinte: “a dualidade massa-elite, em cada homem,
tornou possível uma progressiva culturalização, isto é, elitização das massas.
O que me obriga a não aceitar a tese de Ortega y Gasset, é que ele considera a
distinção entre o homem-massa e o homem-elite como sendo dois casos
completamente diferentes e separados: a maioria dos homens é massa e somente massa; a minoria é elite e somente elite, - o que nos
impede de claramente explicar o fenómeno da comunicação entre a maioria e a
minoria, e os movimentos sociais em que as duas forças do homem concreto, real,
se indeterminam, uma delas funcionando como a subdeterminação e a outra como a
superdeterminação” (in O fim histórico de
Portugal, Lisboa, Ed. Nova Arrancada, Lisboa, 2000, p. 21).
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