… Uma dita «camioneta fantasma» - e, todavia, bem concreta, verdadeira – percorreu Lisboa na que ficaria conhecida como a «noite sangrenta». Várias e importantes figuras do regime republicano foram assassinadas por um bando infame dos seus próprios correligionários, embora situados mais abaixo na hierarquia social. Porém, eram eles quem detinham então as armas e, com o auxílio de alguns «jornalistas» que mais não eram do que propagandistas constantemente apelando à violência, e que prezavam a tinta tanto como a hemoglobina, procederam a sucessivas execuções sumárias dos seus rivais e inimigos de facção, demonstrando não apenas que existiam os republicanos «moderados» e os republicanos «radicais» mas que eram, todos, escumalha infecta. Exagero? É evidente que não: afinal, do mesmo esgoto maçónico-carbonário haviam emergido previamente as criaturas que assassinaram D. Carlos (e D. Luís Filipe) e Sidónio Pais – cujo homicida, significativamente, foi provisoriamente libertado pelo «Dente de Ouro» e companhia sinistra durante aquelas horas de loucura. Estivessem o Buíça e o Costa ainda vivos e não a arderem no Inferno e, sem dúvida, teriam sido igualmente perdoados e mesmo homenageados pessoalmente – porque, há que não esquecê-lo nunca, foram-no postumamente ao longo de muitos, demasiados, anos.
A efeméride, este vergonhoso centenário, teve hoje evocação nos blogs Corta-Fitas e Delito de Opinião, anteontem no jornal Público, e em Fevereiro último no sítio da revista National Geographic Portugal; em 2017 a revista Sábado já publicara um artigo retrospectivo. Em 2010 uma série de televisão em dois episódios, intitulada precisamente «Noite Sangrenta», teve estreia na RTP. No entanto, é difícil não considerar o memorável, espantoso texto de Fernando Pessoa, sem data e sem título mas conhecido como «O observador imparcial chega a uma conclusão inevitável», como outra, e quiçá mais veemente ainda porque contemporânea, condenação do acontecido em 1921. Alguns excertos: «(…) Bandidos da pior espécie (muitas vezes, pessoalmente, bons rapazes e bons amigos – porque estas contradições, que aliás o não são, existem na vida), gatunos com seu quanto de ideal verdadeiro, anarquistas-natos com grandes patriotismos íntimos, de tudo isto vimos na açorda falsa que se seguiu à implantação do regime a que, por contraste com a monarquia que o precedera, se decidiu chamar República. A monarquia havia abusado das ditaduras; os republicanos passaram a legislar em ditadura, fazendo em ditadura as suas leis mais importantes, e nunca as submetendo a cortes constituintes, ou a qualquer espécie de cortes. A lei do divórcio, as leis de família, a lei de separação da Igreja do Estado – todas foram decretos ditatoriais, todas permanecem hoje, e ainda, decretos ditatoriais. (…) A monarquia, desagradando à Nação, e não saindo espontaneamente, criara um estado revolucionário. A república veio e criou dois ou três estados revolucionários. No tempo da monarquia, estava ela, a monarquia, de um lado; do outro estavam, juntos, de simples republicanos a anarquistas, os revolucionários todos. Sobrevinda a república, passaram a ser os republicanos revolucionários entre si, e os monárquicos depostos passaram a ser revolucionários também. A monarquia não conseguira resolver o problema da ordem; a república instituiu a desordem múltipla. (…) E o regime está, na verdade, expresso naquele ignóbil trapo que, imposto por uma reduzidíssima minoria de esfarrapados morais, nos serve de bandeira nacional — trapo contrário à heráldica e à estética porque duas cores se justapõem sem intervenção de um metal e porque é a mais feia coisa que se pode inventar em cor. Está ali contudo a alma do republicanismo português – o encarnado do sangue que derramaram e fizeram derramar, o verde da erva de que por direito mental devem alimentar-se. (…)»
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