A História da Filosofia é
também constituída pelos seus “coveiros” – ou seja, por aqueles que, ao longo
dessa História, decretaram o seu enterro. O primeiro deles terá sido
Aristóteles ou, mais exactamente, os seus seguidores. Depois dele, com efeito,
parecia que nada havia de substancial a acrescentar. E tanto pareceu ser assim
que grande parte da Filosofia Medieval viveu ainda sob a sua luminosa sombra.
Na modernidade, sobretudo a
propósito de Descartes, Kant, Hegel e Nietzsche, também essa “morte da
Filosofia” foi mil e uma vezes proclamada. O que também, fatalmente, acabou por
acontecer no último século, sobretudo a propósito de Martin Heidegger,
provavelmente o maior filósofo europeu do século XX.
Com a Lusofonia, apesar da sua
história bem menos longa, o mesmo tem acontecido. Volta e meia, aparece alguém
a proclamar a sua morte ou, mais eufemisticamente, a perguntar se ela tem ainda
salvação (exemplo mais recente: “Ainda dá para salvar a lusofonia?”, de Rui
Tavares, in Público, 14.05.2021).
Também aqui, porém, estes anúncios de morte são “manifestamente exagerados”. A
Lusofonia pode até estar numa “maré baixa” (sou o primeiro a reconhecê-lo),
mas, ainda assim, não está, de todo, moribunda.
No estrito plano demográfico,
a Lusofonia – ou, mais concretamente, o conjunto de pessoas que falam a nossa
língua comum – continua, de resto, em franco crescimento. Não, como é sabido,
por mérito de Portugal. Em compensação, porém, todos os restantes países de
língua portuguesa continuam em franco crescimento populacional, antecipando-se
inclusivamente que, até final deste século, o número de lusófonos em África
suplante o número de lusófonos na América Latina (leia-se: no Brasil).
No estrito plano quantitativo,
a Lusofonia está pois bem e recomenda-se: quer em valores absolutos, quer em
valores relativos. Como é sabido, a percentagem de falantes da língua
portuguesa nos países da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) está
ainda muito aquém dos cem por cento – fora os casos de Portugal e do Brasil.
Pois bem: pela reiterada aposta dos governos de todos esses países em promover
o ensino da língua portuguesa, essa percentagem também tem subido e continuará
naturalmente a subir, ano após ano. E saliente-se: isso tem acontecido pela
reiterada aposta dos governos de todos esses países, não por mérito de
Portugal.
Recordados estes factos
(incontestáveis), passemos então à avaliação qualitativa do estado da Lusofonia.
No seu artigo, Rui Tavares lança a pungente questão de saber se “ainda dá para
salvar a lusofonia?” partindo, expressamente, de um outro texto publicado num
jornal (“Lusofonia, adeus!”, de Sérgio Rodrigues, in Folha de São Paulo, 12.05.2011). Espremido o texto, porém, a grande
questão que ressalta é, de novo, a questão do Acordo Ortográfico e da
relutância portuguesa em segui-lo, o que merece do jornalista e escritor
brasileiro a seguinte sentença: “está claro que o português não deseja se
tornar uma língua sem centro, com 270 milhões de falantes e algumas variedades
nacionais. Chega de perder tempo!”.
É verdade que no Brasil essa
relutância portuguesa em seguir o Acordo Ortográfico não é de todo
compreendida, como eu próprio já pude testemunhar. Em Maio de 2018 – há
precisamente três anos –, coordenei, como Presidente do MIL (Movimento
Internacional Lusófono), um debate sobre as “as visões da Lusofonia no Brasil”,
integrado num Encontro Científico promovido pelo Instituto de Filosofia
Luso-Brasileira na cidade brasileira de Mariana, em Minas Gerais. Pois bem:
perante um público particularmente culto e qualificado, a grande questão que
emergiu ao longo do demorado debate foi precisamente essa: por que razão em
Portugal havia tanta relutância em seguir o Acordo Ortográfico? E se essa
relutância não deveria ser interpretada como uma atitude anti-lusófona da parte
de Portugal, desde logo em relação ao Brasil?
Esse sentimento é pois real,
ainda que, como procurei então aduzir, a conclusão seja, também aqui,
“manifestamente exagerada”. Sim, é verdade que há em Portugal uma inequívoca relutância
em seguir o Acordo Ortográfico. Mas não é de todo verdade que isso deva ser
interpretado como uma atitude anti-lusófona da parte de Portugal, desde logo em
relação ao Brasil. Como sempre defendi, a Lusofonia não depende de nenhum
Acordo Ortográfico como condição necessária – por mais que este pudesse ser
útil, em teoria, assim ele tivesse cumprido a sua promessa de uma real
“uniformização ortográfica” (o que ficou muito longe de acontecer, como é
sabido). E há em Portugal muitos exemplos de pessoas que, sendo contra o Acordo
Ortográfico, não são por isso contra a Lusofonia. Bem pelo contrário.
Extravasando este “irritante
diplomático”, há de facto muito a fazer, como refere Rui Tavares, a começar
pela dinamização da própria CPLP, que nem sequer face à tragédia em curso no
norte de Moçambique tem dado uma resposta à altura (ainda que aí as
responsabilidades maiores estejam a montante). Quanto ao mais, as ideias que
lança são em geral boas, ainda que nem todas originais. Apenas um exemplo –
precisamente a propósito do artigo de Rui Tavares, António Braz Teixeira,
Presidente do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira e ex-Vice-Presidente da
RTP (entre muitos outros cargos relevantes que ocupou), recordou-me que, em
1987, ele próprio teve a iniciativa de promover uma TV Cultura da CPLP, tendo
sido até fundada, em 1991, em Cabo Verde, a Organização das Televisões de Língua
Portuguesa, com Estatutos aprovados e Órgãos eleitos. Trinta anos depois, o
projecto está ainda por concretizar. Caso para dizer: a Lusofonia não precisa
de ser salva – apenas de ser desadiada…
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