Ainda hoje, como procurámos
demonstrar na nossa dissertação de doutoramento (Fundamentos e Firmamentos do pensamento português contemporâneo: uma perspectiva
a partir da visão de José Marinho, Universidade de Lisboa, 2004), a visão
simultaneamente mais fina e mais funda do pensamento português contemporâneo
encontra-se em José Marinho, em particular na sua obra Verdade, Condição e Destino no pensamento português contemporâneo (1976).
Nessa obra, as passagens sobre
António Sérgio não são muitas mas, em compensação, são muito elucidativas.
Assim, fala-nos José Marinho, expressamente a propósito de António Sérgio, de
um “razão judiciosa [que] toma o passo à razão compreensiva e elimina como
erróneo ou falso o que é ou se lhe afigura obscuro ou vago, metafórico,
hiperbólico, fantasioso ou inconsequente”, de um “exercício obsessivo da razão
judiciosa sem conceito”.
Não obstante a sua “intuição
radical, a sua promissora “intuição radical” – a intuição do “uno unificante”,
nas palavras do próprio Sérgio: “Tal uno unificante é o verdadeiro ser. O
Ser-Acto, por conseguinte, é o Eu espiritual, originário, puro de que são
degradações – ou prefigurações longínquas – as consciências individuais de cada
um de nós.” –, este nosso pensador nunca conseguiu, para o autor da Verdade, Condição e Destino no pensamento
português contemporâneo, superar um conceito de razão que se cumpre na mera
oposição, na mera cisão, não conseguindo, por via disso, realizar a “união
cumulativa”.
Ainda nas suas próprias
palavras: “Comparada com a de Pessoa, a situação de António Sérgio é paradoxal.
Dir-se-ia, por um lado, que a sua personalidade está também, com o seu próprio
pensamento, profundamente cindida entre a luz e a treva, devendo o que disse do
seu directo antecessor aplicar-se como rigor maior a ele próprio. Antero de
Quental, com efeito, tenta ainda a mediação na penumbra, António Sérgio, pelo
contrário, cumpre-se na oposição da luz e da treva, do branco e do negro, da
verdade e do erro, do bem e do mal.”. Em suma, nesta visão, Sérgio seguiu a
“via extrema do humanismo”, da “imanência da verdade no homem”.
Numa visão outra, que Manuel
Ferreira Patrício qualificou como “muito benevolente para com António Sérgio”,
Eduardo Abranches de Soveral ensaia uma outra perspectiva sobre António Sérgio
– fá-lo, em particular, na sua obra O
Pensamento de António Sérgio: síntese interpretativa e crítica.
Aí, chega mesma a considerar
que “ao contrário do que poderia supor-se, Sérgio não foi agnóstico. Há mesmo
no seu pensamento uma forte e emotiva componente religiosa” – começando por
citar, em seu abono, a seguinte passagem dos Ensaios: “Em mim (…) há um racionalismo radical que tem o seu quê
de místico, de vida unitiva”.
Citando ainda outras passagens
– em que Sérgio alude à “união com princípio supremo, pensamento absoluto e
impessoal”, ou à “Unidade da consciência humana” –, Eduardo Abranches de
Soveral chega mesmo a considerar que António Sérgio, “à sua maneira, como que subscreve
a afirmação agostiniana de que Deus habita no interior do homem”, ressalvando,
porém, que “para um melhor esclarecimento das posições religiosas de Sérgio (…)
convirá fazer uma breve referência à forma como se situou perante o
Cristianismo”.
Nesse plano, salienta a tese
de que, para Sérgio, o Deus do cristianismo é “o primeiro Deus que é já
concebido com uma dose suficiente de racionalismo”, citando ainda esta
eloquente passagem: “Ao que suponho, a Europa só terá uma religião europeia (…)
quando virmos no Cristianismo a religião do Espírito, adoradora portanto de um
Deus do Espírito – situado cá,
adentro de nós – e concebido pela inteligência e pelo puro amor”.
As consequências que António
Sérgio retira desta concepção de divino parecem, contudo, cingirem-se sobretudo
ao plano ético-político, chegando mesmo a escrever que “os corolários sociais
da doutrina cristã são de extrema esquerda; e se há católicos de direita,
são-no pela mais rotunda infidelidade ao Evangelho”. Ou seja, em suma: ao
contrário do que acontece, por exemplo, em Marinho, a concepção do divino em
Sérgio não parece produzir qualquer inquietação metafísico-escatológica, antes,
tão-só, ético-política, em que, de resto, o valor maior é o da igualdade, não o
da liberdade, como nota Eduardo Abranches de Soveral.
Em contra-luz, sugere Manuel Ferreira Patrício “que se deve levar mais a sério o facto de António Sérgio ter nascido em Damão e ter sofrido uma influência materna provavelmente hinduísta, ou budista. Nesta perspectiva, já faria outro sentido a noção de um ‘Eu absoluto inconsciente’, como mais sentido faria o interesse de Sérgio por Antero de Quental, atrás do qual se encontra Eduardo de Hartmann (…). É o impersonalismo sergiano, para que nós chamámos a atenção em 1984” – no seu ensaio A fundamentação filosófica da educação em António Sérgio, em que analisa Sérgio de uma forma a nosso ver ainda hoje insuperada.
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