No devido tempo, far-se-ão
decerto muitas análises da cobertura noticiosa (nomeadamente, televisiva)
destes tempos de pandemia. Pela nossa parte, partimos da seguinte percepção:
se, num primeiro momento, essa cobertura (em particular, a televisiva) foi fundamental
para promover a quarentena geral da população, quando houver ordem das
autoridades para terminar a quarentena, essa mesma cobertura será um dos principais
obstáculos a superar. Isso parece-me especialmente evidente no caso das
televisões – o que talvez se explique pelo nível de audiências só possível por
essa mesma quarentena…
Falamos aqui, claro está,
sobretudo dos noticiários. Sendo que, aí, a cobertura internacional é tão
significativa quanto a nacional. Quando cobrem o que se está a passar noutros
países, o subtexto é (quase) sempre o mesmo: os países que não estão a cumprir
uma quarentena tão rígida quanto a nossa estão errados e em breve verificarão
isso. Isto mesmo quando os dados não permitem, de todo, retirar essa conclusão.
Não importa. A lógica televisiva é muitas vezes essa: primeiro conclui-se,
depois logo se arranjam os “argumentos”.
Nesse contexto geral, o
recente incidente suscitado por uma peça jornalística da TVI nem sequer é
particularmente significativo. Ainda que aí o preconceito verbalizado tenha
sido outro: em síntese, a população do norte de Portugal estaria a ser mais
atingida pela Covid-19 porque, entre outras razões, era menos instruída. Por
mero acaso, assisti em tempo real à referida peça e lembro-me de ter dito para
mim mesmo: “mais uma palermice”. Mas, dado esse contexto geral, não lhe dei
particular importância. Até porque o subtexto dessa alegação é relativamente
comum. O que não é tão comum é ser assim tão claramente expresso, para mais em
relação a uma parte da população portuguesa.
Já nas coberturas
internacionais, é muito frequente esse subtexto/ preconceito vir mais à tona:
as pessoas mais conservadoras/ mais religiosas/ mais de direita (a ordem aqui é
relativamente arbitrária) são, por definição, menos instruídas. Ora, esse
subtexto/ preconceito continua a aplicar-se, “na perfeição”, ao norte do país.
E não é sequer preciso recuar ao pós-25 de Abril, que por pouco não terminou
numa guerra civil que, precisamente, tinha uma linha geográfica de fronteira:
entre um sul proclamadamente mais “progressista” e um norte mais conservador/
mais religioso/ mais de direita. O que na peça jornalística da TVI se
verbalizou foi, assim, apenas isso: um atavismo com (pelo menos) quase meio
século mas que persiste.
*
Como era assaz previsível, o
clima geral de extrema emotividade que se tem criado em torno da pandemia
afectou (ou melhor, infectou), em muito, a cobertura noticiosa que se fez, este
ano, das comemorações da Revolução de 25 de Abril de 1974. Antes de mais,
dever-se-ia ter recordado que, por razões diversas, essas comemorações não
passaram pela Assembleia da República em 1983 (por ser dia de Eleições), em
1993 (por causa, ironia das ironias, de um boicote jornalístico) e em 2011 (por
entretanto a Assembleia da República ter sido dissolvida). Ao invés,
insistiu-se num falso precedente, como se fosse de facto escandaloso que, “pela
primeira vez”, a Assembleia da República não comemorasse o 25 de Abril.
O corolário de todo esse clima
foi a forma enviesada (passe o eufemismo) como os media (em particular, uma vez mais, as televisões) cobriram o eco
público do repto feito para que, no próprio dia, todas as pessoas confinadas em
sua casa fossem à janela para assinalar a data. Foi hilariante verificar todos
os “ângulos fechados” que se engendraram para procurar esconder que esse repto
teve uma repercussão muito pouco significativa. Assim, em muitas das ruas em
que só num prédio havia uma manifestação, só se filmou (para se escamotear o
fiasco) esse prédio, ou, mais exactamente, só o andar em que havia uma
manifestação…
Admitimos que esse
enviesamento (passe, de novo, o eufemismo) tenha decorrido apenas de um
exacerbado afã de “pedagogia democrática”, de que tanto se tem falado nestes
tempos. De facto, depois de se ter criado a suspeita pública de que quem não
concordava com as comemorações do 25 de Abril na Assembleia da República só
poderia ser “fascista”, a filmagem das muitas ruas silenciosas poderia levar à
conclusão (não menos enviesada) de que a grande maioria da população se tinha
tornado “fascista” – o que, obviamente, não corresponde de todo à verdade.
Temos, ao invés, a convicção plena de que a grande maioria da população
concorda com o nosso regime democrático pluripartidário, por mais que, por
razões diversas, se sinta (muito) insatisfeita com a nossa classe política.
Assim, toda esta “pedagogia
democrática” foi, pois, manifestamente desproporcionada. Há, de resto, a esse
respeito, um equívoco que persiste: mesmo aqueles que têm uma visão mais
positiva do Estado Novo não são necessariamente contra o nosso regime
democrático pluripartidário; do mesmo modo, todos aqueles que, em geral, fazem
um balanço favorável dos tempos da Monarquia não são necessariamente
anti-republicanos. Este paralelo é aqui, aliás, particularmente pertinente: na
nossa época, já quase ninguém comemora a Revolução de 5 de Outubro de 1910;
todavia, daqui não se pode concluir que a grande maioria da população não seja
republicana. Pela nossa parte, temos a plena convicção de que, se o nosso
regime fosse referendado, só uma muito pequena minoria optaria pelo regime
monárquico.
Dispensava-se pois, por isso,
toda essa “pedagogia” (leia-se: histeria) “democrática” (alegadamente
“anti-fascista”). Já vão longe os tempos do PREC (Processo Revolucionário em
Curso) e não é por ter voltado a “Telescola” que os media devem tratar os portugueses como crianças. Como gosta (e bem)
de lembrar o nosso actual Presidente da República, o povo português não nasceu
em 1974 (nem, escusado seria dizê-lo, em 1926 ou em 1910) – é, muito longe
disso, um povo com quase nove séculos de história. Não sabemos se somos, por
isso, um “milagre”, como Marcelo Rebelo de Sousa sugeriu num discurso recente.
Mas somos decerto, pelo menos, um povo adulto, um povo que, desde logo por essa
longevidade, tem uma acrescida sageza histórica que o torna mais imune a essa
visões simplistas/ maniqueístas que tão disseminadas foram, até à náusea,
nestas últimas semanas. Já nos basta a disseminação do vírus…
Renato Epifânio
Presidente
do MIL: Movimento Internacional Lusófono
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