É recorrente considerar-se
Agostinho da Silva como um dos mais notórios discípulos de António Sérgio. Essa
é, porém, uma daquelas “ideias feitas” que, apesar de mil vezes repetida, está
muito longe de corresponder à verdade, como aqui, de forma sucinta,
verificaremos. Partiremos, para tal, de uma extensa entrevista concedida a
Alfredo Campos Matos sobre António Sérgio (Agostinho
da Silva e Vasco de Magalhães-Vilhena entrevistados sobre António Sérgio, Horizonte,
2007), onde Agostinho da Silva começa por recordar que conheceu Sérgio no
início da década de trinta, em Paris, “para onde tinha ido com uma bolsa da
Junta Nacional de Educação” (pp. 11-12), dando assim início a uma relação que
foi realmente importante numa determinada fase do longo e sinuoso percurso de
Agostinho da Silva – nós próprios, em vários textos, temos falado da fase
“seareira” ou “sergiana” de Agostinho da Silva, que se estendeu até à sua
partida para o Brasil, em meados da década seguinte, onde Agostinho vai iniciar
uma fase realmente nova da sua vida e obra (ver, a esse respeito, o nosso livro:
Perspectivas sobre Agostinho da Silva,
Zéfiro, 2008).
Regressando a essa referida
entrevista, Agostinho da Silva, para além de uma série de considerações mais de
ordem pessoal – algumas delas cáusticas, como por exemplo: “A única coisa que
ele me disse que havia no Brasil era calor, calor insuportável. Ele nunca
percebeu o Brasil.” (p. 19) –, recorda depois as célebres tertúlias na casa de António
Sérgio, que chegou a considerar ter sido a sua “segunda Universidade”: “Depois
[da Faculdade de Letras do Porto], para mim, houve uma segunda Universidade,
que foi a casa do António Sérgio aos sábados” (in Vida Conversável, segunda parte, inédita; in NOVA ÁGUIA, nº 17, 1º semestre de 2016, p. 244). À pergunta
expressa sobre “a importância de António Sérgio para a cultura contemporânea”,
a resposta de Agostinho da Silva é porém, uma vez mais, bem pouco laudatória,
considerando-o, no essencial, como um pensador “ultrapassado”: “O que aconteceu
foi que o Sérgio esteve muito mergulhado na cultura do seu tempo, e nos
aspectos que tinha a cultura do seu tempo, para pular fora dele (…). O que eu
digo é que o Sérgio foi inteiramente ultrapassado” (pp. 25-26).
Eis, em suma, o retrato que
Agostinho da Silva nos dá de António Sérgio nesta extensa entrevista – para o
atestar, atentemos ainda nesta passagem: “…havia uma intolerância enorme do
Sérgio para quem era diferente” (p. 27) –, em consonância, de resto, com outras
passagens da sua obra – a título de exemplo: “…Sérgio não ousou afrontar os
problemas filosóficos mais profundos, as questões de dúvida. Preferia manter-se
na certeza.”; “Mesmo como pedagogo, a sua atitude tendia a ser de grande
arrogância intelectual.” [cf. Dispersos,
ICALP, 1989, p. 55]; “…mas ele [Sérgio] não me ensinou o racionalismo:
ensinou-me antes o irracionalismo, por reacção minha.” [cf. Francisco Palma
Dias, “Agostinho da Silva, Bandeirante do Espírito”, in AA.VV., Agostinho [da Silva], Green Forest do
Brasil Editora, 2000, p. 155]; “…quando examinamos o fracasso, pois houve
fracasso das cooperativas de António Sérgio, descobrimos a razão ao verificar
que ele foi sempre ver, como modelo de cooperativa, a cooperativa inglesa ou a
cooperativa sueca (…). Veio, outra vez, uma fórmula estrangeira. António Sérgio
teria sido um grande intelectual lá fora mas não o foi em Portugal, pois era um
estrangeiro em Portugal” (in Conversas
com Agostinho da Silva, entrevista de Victor Mendanha, Pergaminho, 1994, p.
43).
Nessa medida, ainda que
indirectamente, Agostinho terá sido, em última instância, muito mais do que um
“discípulo de Sérgio”, um “discípulo de Leonardo” – António Telmo considerou-o
mesmo como “o último discípulo de Leonardo Coimbra” [cf. “Testemunho”, in Diário de Notícias, 4/4/1994]. Isto apesar
do próprio Agostinho da Silva, na sua expressão algo jocosa, “nunca ter sido
leonardesco” [cf. AA.VV., Agostinho [da
Silva], ed. cit., p. 155] –, não obstante ter reconhecido a sua “largueza
de espírito” [cf. Dispersos, ed.
cit., p. 174]. Mais do que discípulo de Leonardo, Agostinho terá permanecido
sempre, sobretudo, discípulo da Faculdade de Letras do Porto enquanto “escola
de liberdade” [cf. ibid., p. 147]. Ao
longo da vida, de resto, irá, reiteradamente, afirmar que essa “era uma
Faculdade sem uma organização rígida e em que se dava muito mais atenção a quem
elaborava perguntas do que a quem fornecia as respostas que vinham nos manuais”
–, nunca esquecendo os seus professores, não só Leonardo Coimbra – “um boémio
do pensamento (...), um homem capaz de atitudes que os catedráticos não tomam”
– como, sobretudo, Teixeira Rego – “uma das pessoas mais inteligentes que
conheci” (cf. Perspectivas sobre
Agostinho da Silva, ed. cit., p. 62).
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