Para o Carlos Carranca (1957-2019)
Num primeiro olhar, Miguel
Torga e Agostinho da Silva parecem ter tido pouco em comum, apesar de algumas
afinidades nos percursos biográficos: nasceram com apenas um ano de diferença
(Agostinho da Silva em 1906, Miguel Torga em 1907; curiosamente, também viriam
a falecer com um ano de diferença: Agostinho da Silva em 1994, Miguel Torga no
ano seguinte); foram ambos transmontanos (Miguel Torga porque aí nasceu, em São
Martinho da Anta; Agostinho da Silva porque, apesar de ter nascido no Porto,
sempre considerou Barca d’Alva como a “sua terra”, dado que aí passou parte da
sua infância); finalmente, viveram ambos no Brasil (Miguel Torga mais cedo,
entre 1920 e 1925; Agostinho da Silva bem mais tarde, entre 1944 e 1969).
Se os dois foram ambos homens
do “Portugal do Norte” ou do “primeiro Portugal”, Miguel Torga, à luz da
caracterização agostiniana, foi-o muito mais do que Agostinho da Silva – como o
próprio escreveu, na sua obra Um Fernando
Pessoa: “O primeiro Portugal foi o Portugal continental, o da defesa contra
a Espanha, ou melhor, contra Castela, e, porventura, sobretudo, o Portugal da
velha unidade galaico-portuguesa, o Portugal lírico e guerreiro das cantigas de
amigo e das velhas trovas do cancioneiro popular; nele estiveram as raízes mais
profundas da nacionalidade e nele sempre residiram as inabaláveis bases daquele
religioso amor da liberdade que caracteriza Portugal como grei política (…).”;
“Terminada, porém, a fase de expansão, outro Portugal entrou em jogo e muito
mais adaptado à sua tarefa do que o Portugal do Norte, demasiado rígido para as
aventuras da miscigenação, da tessitura económica e do nomadismo que não
conhece limites (…).”.
Em suma: enquanto que Miguel
Torga esteve sempre muito mais ligado à terra, à “sua terra” – não por acaso, o
termo “telúrico” é abundantemente usado para qualificar a sua obra, em
particular a sua poesia –, Agostinho da Silva, apesar das sua origens
nortenhas, foi muito mais um homem marítimo, muito mais vocacionado “para as
aventuras da miscigenação e do nomadismo que não conhece limites”, assumindo-se
assim como um precursor desse “terceiro Portugal” de que nos fala ainda na sua Um Fernando Pessoa: “[Finalmente, o
terceiro Portugal] É um Portugal que não tem seu centro em parte alguma e cuja
periferia será marcada pela expansão de sua língua e da sua cultura de Pax in excelsis que ela levar consigo
(…): [é] o Portugal da Hora, o Portugal de Bandarra, de Vieira e da Mensagem (…).”,
conforme o já aprofundado na nossa obra Visões
de Agostinho da Silva (Zéfiro, 2006).
*
Dito isto, Miguel Torga e
Agostinho da Silva assumiram os dois, na fase final das suas vidas,
preocupações muito convergentes com a situação e o futuro de Portugal.
Comecemos por Miguel Torga, citando um eloquente excerto de uma carta a Mário
Soares (de quem, curiosamente, Agostinho da Silva também foi próximo, tendo
chegado a ser seu “explicador”, na década de 30, contratado pelo seu pai, João
Soares): “(…) é pena que o seu medular
optimismo doire sempre as conclusões de cada arrazoado. Refiro-me concretamente
às idílicas considerações com que remata todas as referências à Europa. Eu
também sou, e com desvanecimento, europeu. Mas disse um dia destes a um
jornalista do Le Monde que só o era
com significação se continuasse a ser plenamente português. Desculpe
lembrar-lhe esta nossa velha divergência, infelizmente irremediável, que só
trago à colação por descargo de consciência. Não há, nem haverá num futuro
previsível, outra Europa senão esta malfadada do capitalismo insaciável e
tentacular.”.
Citemos agora algumas passagens do seu Diário
(ano de 1993): “2 de Janeiro: “Ocupados sem resistência e sem dor. Anestesiados
previamente pelos invasores e seus cúmplices, somos agora oficialmente europeus
de primeira, espanhóis de segunda e portugueses de terceira.”; “6 de Fevereiro:
Até esta desgraça agora nos acontece! As nossas relações fraternas com o Brasil
comprometidas por leviandade governativa e imperativo comunitário. Quem
contratou a submissão nacional às ordens de Bruxelas esqueceu-se de especificar
que a carta de Pêro Vaz de Caminha de quinhentos é um juramento português de
amor e fidelidade eternos à Terra de Santa Cruz e à sua gente.”; “20 de
Fevereiro: Angola continua a ferro e fogo. Os dois tribalismos, o oficial e o
rebelde, combatem-se numa luta de morte. Não realizámos ali, infelizmente, o
milagre brasileiro da fraternidade racial e nacional. Deixámos as populações na
primitiva decência da selva, à mercê da avidez e rivalidade das grandes
potências, sem pátria, sem civismo e sem amor aos irmãos de raça e de berço.”.
E o que nos disse Agostinho da Silva, também por essa altura?
Ouçamo-lo: “A Comunidade Económica
Europeia encontra-se, continuamente, em desacordo consigo própria pois
trata-se de pequenas nações provincianas a tentarem agregar-se numa Nação
grande. Nós, que fizemos o Brasil, sabemos o que isso é há muito tempo, há
centenas de anos. Além do mais a CEE não é a Europa, como se costuma
erradamente dizer, mas apenas o departamento económico da Europa. Qualquer
departamento económico deve ser, sempre, secundário porque o que devemos ter é
uma Europa cultural onde a economia seja o sustento mas nunca o objectivo.”; “Os portugueses levaram a Europa ao Mundo mas, agora,
todos aqueles que falam a língua portuguesa, têm o dever de trazer o Mundo à
Europa. E espero que tragam esse Mundo tão diferente da Europa, que não deseja
aniquilar a Europa como muita gente supõe
mas, isso sim, humanizar essa mesma Europa, restituir-lhe aquela força interior
e aquela capacidade de imaginação por ela perdida por só imaginar num
determinado sentido, por se restringir a um certo campo (…), vamos ser médicos
e enfermeiros da Europa ou não seremos nada.”.
*
Tudo isso, no caso mais evidente de Agostinho da Silva, em prol do
recentramento (marítimo, atlântico, lusófono, diríamos nós hoje) de Portugal,
ou, mais, concretamente, em prol da consolidação de uma “comunidade luso-afro-brasileira, com o centro de coordenação em
África, de maneira que não fosse uma renovação do imperialismo português, nem
um começo do imperialismo brasileiro. O foco central poderia ser em Angola, no
planalto, deixando Luanda à borda do mar e subir, tal como se fizera no Brasil
em que se deixou a terra baixa e se foi estabelecer a nova capital num planalto
com mil metros de altitude. Fizessem a mesma coisa em Angola, e essa nova
cidade entraria em correspondência com Brasília e com Lisboa para se começar a
formar uma comunidade luso-afro-brasileira”.
Num texto publicado no jornal brasileiro O
Estado de São Paulo, com a data de 27 de Outubro de 1957, Agostinho da
Silva havia já proposto “uma Confederação dos povos de língua portuguesa”. Num
texto posterior (“Proposição”, 1974), expressamente citado no prólogo da
Declaração de Princípios e Objectivos do MIL: Movimento Internacional Lusófono,
chegará a falar de um mesmo povo, de um “Povo não realizado que actualmente
habita Portugal, a Guiné, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, o Brasil, Angola,
Moçambique, Macau, Timor, e vive, como emigrante ou exilado, da Rússia ao
Chile, do Canadá à Austrália”.
Na sua perspectiva, assim se
cumpriria essa Comunidade Lusófona, a futura “Pátria de todos nós”: “Do rectângulo da Europa
passámos para algo totalmente diferente. Agora, Portugal é todo o território de
língua portuguesa. Os brasileiros poderão chamar-lhe Brasil e os moçambicanos
poderão chamar-lhe Moçambique. É uma Pátria estendida a todos os homens, aquilo
que Fernando Pessoa julgou ser a sua Pátria: a língua portuguesa. Agora, é essa
a Pátria de todos nós.”.
Conforme afirmou ainda: “Fernando Pessoa dizia ´a
minha Pátria é a língua portuguesa’. Um
dia seremos todos — portugueses, brasileiros, angolanos,
moçambicanos, guineenses e todos os mais — a dizer que a nossa Pátria é a língua portuguesa.”.
Daí
ainda o ter-se referido ao que “no tempo e no espaço, podemos chamar a
área de Cultura Portuguesa, a pátria ecuménica da nossa língua”, daí,
enfim, o ter falado de uma “placa linguística de povos de língua
portuguesa — semelhante às placas que constituem o planeta e que
jogam entre si”,
base da criação de uma “comunidade” que expressamente antecipou: “Trata-se,
actualmente, de poder começar a fabricar uma comunidade dos
países de língua portuguesa, política essa que tem uma
vertente cultural e uma outra, muito importante, económica”.
Prefigurando
até, com esse horizonte em vista, o “sacrifício de Portugal como Nação”:
“esse Império, que só poderá surgir quando Portugal, sacrificando-se como
Nação, apenas for um dos elementos de uma comunidade de língua portuguesa”.
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