Daí deriva – não tenhamos medo da palavra – a sua
“superioridade” sobre todos os outros seres, designadamente, sobre todos os
outros animais. A respeito dessa “superioridade”, ou dessa “diferença
qualitativa”, escreveu Marinho as seguintes palavras: “Ora, temos como seguro,
que o [homem] não é [um vivente como os outros viventes]. Quem o diz ‘animal
racional’ indica claramente não ser possível ligá-lo à generalidade dos
viventes sem, simultaneamente, o separar.” ; “A
distinção entre o homem e a comunidade vital em que surge, ganha assim relevo
inegável. O animal difere, mas não se diferencia. Projectado como um indivíduo
para além da vida de que surgiu, da espécie de que proveio, nele não se cinde a
relação como tal, e todo o ser do seu ser, todo o íntimo sentido do seu agir o
faz regressar constantemente àquilo mesmo de que proveio.”. Por isso, aliás, defendeu ainda Marinho que “o simples ser da natureza é
incessante regresso”. Daí, em suma, o horizonte último da formação do humano em Marinho: nada
menos do que a plenitude.
*
O homem, porém, só pode chegar a
aceder à plenitude “enquanto espírito”, não, de modo algum, “enquanto homem”.
Mas o que significa exactamente isso: ser “enquanto espírito”? A expressão não
é provavelmente a mais feliz porque, de imediato, nos pode levar a pensar numa
entidade mais ou menos fantasmática, na qual seria suposto o homem tornar-se.
Ora, trata-se aqui exactamente do contrário. Nas palavras de José Marinho, “o
espírito não é, no homem, um ser que se acrescenta ao ser, mas sim a maneira
como o ser do homem eminentemente é” – o seu “autêntico ser”, como,
desde logo, nos havia já dito num dos seus Aforismos
sobre o que mais importa. Nessa medida, trata-se pois apenas que o
homem seja segundo a “maneira como o seu ser eminentemente é”, o mesmo é dizer,
segundo a medida do seu “ser autêntico”.
Mas eis aqui, precisamente, toda
a dificuldade – como escreveu ainda Marinho a este respeito, “nada mais difícil
do que ser o que verdadeiramente se é”. Tudo se torna, entretanto,
aparentemente mais fácil se atentarmos numa outra afirmação de José Marinho:
diz-nos ele que “o homem se torna espírito ao interrogar-se sobre o enigma que
é para si”, não só – esclareça-se desde já – “sobre o enigma que o
homem é para si”, “mas, mais fundamente, [sobre] o enigma que nele é o ser da
verdade para si”. E isto,
alegadamente, porque, ao interrogar-se apenas sobre o “enigma que ele enquanto
homem é para si”, não atinge ele o “mais fundo enigma”, não atinge ele o “ser
do seu próprio ser” – ainda nas palavras de Marinho: “O homem pergunta-se o que
é, e perguntando-se o que é enquanto homem não atinge o ser do seu ser. Ao enigma
que nele é o ser [da
verdade]
para si não ausculta ele longamente em seu fundo interrogar. E assim todo o
responder é precário.”.
Nessa medida, importa pois que o
homem se interrogue “não só sobre o enigma que ele é para si, mas, mais fundamente,
sobre o enigma que nele é o ser da verdade para si” – só assim ele, cada um de
nós, cumprirá, enfim, esta “viagem” que Marinho nos propõe: de assunção de
“enigma do ser”, de transcensão do “drama da existência”. De facto, é essa a proposta
marinhiana: transcender o “drama da existência”, pela plena assunção do “enigma
do ser”. Transcender, mas não anular, como José Marinho nos antecipa. Daí,
desde logo, a sua denúncia da “ilusão de resolver plenamente o drama de ser no
plano das existências”. Como logo de
seguida nos adverte, “a metafísica sabe que o drama é insolúvel como tal” – de
resto, ainda nas suas palavras, “o conhecimento metafísico surge na medida em
que abandonamos a ilusão e o desejo de resolver plenamente o drama de ser no
plano das existências”.
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